Preocupadas com a possível
escassez de alimentos e proteína animal dentro dos próximos 30 anos por conta
do aumento da população mundial, pesquisadoras da Universidade Federal do Rio
Grande (FURG), no Rio Grande do Sul, desenvolveram um pão elaborado com farinha
de barata desidratada.
A Organização das Nações
Unidas (ONU) estima que até 2050 a população terá aumentado em 32%, alcançando
cerca de 9,7 bilhões de pessoas e, por isso, passou a recomendar a introdução
de insetos na alimentação humana - os bichinhos são ricos em proteínas, existem
em abundância e custam pouco.
Mas antes de fazer cara de
asco pensando nas baratas cascudas que circulam pelos esgotos das cidades,
saiba que as baratas usadas na pesquisa são as chamadas baratas cinéria
(Nauphoeta cinérea), de origem africana, produzidas em cativeiro e próprias
para consumo humano, ao contrário da barata doméstica (Periplaneta americana)
comum, de origem americana.
A escolha da barata para o
estudo tem duas razões especiais: além de ser uma importante fonte proteica
(tem cerca de 70% de proteínas, contra 50% da carne bovina), a barata existe há
milhões de anos e preservou suas características genéticas mesmo com todo
processo de evolução.
"Alguma coisa muito boa
elas possuem para passarem pela evolução sem precisar se adaptar aos
ambientes", afirma a engenheira de alimentos Andressa Jantzen da Silva
Lucas, uma das responsáveis pela pesquisa, ao lado da engenheira de alimentos
Lauren Menegon de Oliveira.
O processo de fabricação
As pesquisadoras compraram as
baratas desidratadas de um criador certificado pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) que fica em Betim (MG). O inseto pode ser
comprado vivo também, mas Andressa diz que o transporte seria mais difícil. O
quilo da barata desidratada custou R$ 200.
As baratas foram moídas em um
moinho de bolas, um equipamento especializado para moer matérias sólidas e obter
partículas pequenas. O material obtido foi peneirado para ficar homogêneo.
Por fim, na receita
tradicional do pão, as pesquisadoras adicionaram 90% de farinha de trigo comum
e 10% de farinha de barata desidratada.
O resultado foi surpreendente:
"Com a adição de 10% da farinha de barata, o teor proteico do pão aumentou
133%", afirmou Andressa.
Para efeito de comparação, uma
fatia de 100 gramas do pão caseiro feito com farinha tradicional tem 9,7 gramas
de proteínas, enquanto uma fatia de 100 gramas do pão de barata tem 22,6 gramas
de proteína.
"Além disso, no pão feito
com a farinha de barata reduzimos em 68% a quantidade de gordura adicionada na
receita, pois aproveitamos a gordura presente na farinha de barata", afirmou
a pesquisadora.
As baratas cinéreas, de origem
africana e produzidas em laboratório, são próprias para consumo humano — Foto:
Divulgação/BBC As baratas cinéreas, de origem africana e produzidas em
laboratório, são próprias para consumo humano — Foto: Divulgação/BBC
As baratas cinéreas, de origem
africana e produzidas em laboratório, são próprias para consumo humano — Foto:
Divulgação/BBC
Andressa garante que o pão de
barata não tem cheiro nem gosto alterados em comparação com o pão feito com
farinha tradicional. "Fizemos análise sensorial, de textura, de odor, cor
e sabor. Não houve alteração significativa. Talvez a pessoa que comer perceba
um leve toque com gosto de oleaginosas, de amendoim", afirmou a
engenheira.
O médico nutrólogo Ênio
Cardillo Vieira, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), é um incentivador do consumo de insetos por humanos. De acordo ele,
existem muitos insetos que podem ser industrializados para consumo humano,
sendo que os principais comestíveis são grilo, vespa, formiga, borboletas,
bicho da seda, gafanhoto, aranha, escorpião e algumas espécies de barata.
"O nosso problema de
aceitação dos insetos é uma questão cultural, mas, muitas vezes, os insetos são
transformados em pó e nem percebemos o que eram antes", diz ele,
acrescentando que os insetos também são ecologicamente corretos e causam menos
impactos ambientais.
"São necessários 250
metros quadrados de terra para produzirmos 1 kg de carne de boi, enquanto
precisamos de apenas 30 metros quadrados para produzirmos 1 kg de insetos. O
mesmo vale para a água: precisamos usar 20 mil litros de água na produção de 1
kg de carne bovina, contra mil litros para 1 kg de insetos", afirma o
professor.
O futuro próximo
O uso do inseto como alimento
humano é algo tão esperado para os próximos anos que a Associação Brasileira de
Criadores de Insetos (Asbraci) realizará em novembro o primeiro congresso sobre
o tema, em Minas Gerais.
Segundo a Abrasci, o Brasil
detém a maior biodiversidade de espécies do planeta e possui pelo menos 135
tipos de insetos relatados como comestíveis (divididos em 9 ordens, 23
famílias, 47 gêneros e 95 espécies).
O clima tropical do país e a
presença do sol o ano todo o torna um candidato perfeito para a criação e
colheita de insetos, sendo uma alternativa sustentável e de baixo custo.
Com 70% de proteína, as
baratas cinéreas são uma importante fonte proteica — Foto: Divulgação/BBC Com
70% de proteína, as baratas cinéreas são uma importante fonte proteica — Foto:
Divulgação/BBC
Com 70% de proteína, as
baratas cinéreas são uma importante fonte proteica — Foto: Divulgação/BBC
Desde 1º de janeiro deste ano
a legislação europeia cataloga os insetos como "novo alimento" que,
segundo a ONU, são consumidos por mais de 2 bilhões de pessoas no mundo.
Já existem países
comercializando os bichinhos industrializados. Na Espanha, por exemplo, a rede
de supermercados Carrefour lançou em maio um setor de alimentos produzidos à
base de insetos como alternativa de compra "sustentável e respeitosa"
com o meio ambiente.
Entre os produtos estão barras
de cereais, snacks e granola - todos embalados em papel reciclável e com
rótulos detalhados sobre a qualidade nutricional.
Outras pesquisas
Depois do sucesso com o pão de
farinha de barata, as engenheiras Andressa e Lauren continuam a pesquisa sobre
os benefícios dos insetos na alimentação humana. Elas incluíram outros dois
insetos na análise: o grilo preto (Gryllus assimilis) e o tenébrio comum
(Tenébrio molitor), um tipo de larva do besouro.
Além dos pães, as pesquisadoras
estão testando a fabricação de bolos e barras de cereais. Além disso, as duas
engenheiras também criaram uma empresa para desenvolver a tecnologia e
estimular que outras empresas trabalhem com insetos em escala industrial.
Mas, pelo menos por enquanto,
você não vai encontrar o pão de barata na padaria mais próxima da sua casa, já
que o consumo de insetos por humanos ainda não está autorizado nem
regulamentado pela Anvisa - hoje eles só podem ser usados para alimentar outros
animais.
Segundo a agência, "o
consumo de insetos não possui histórico de uso como alimentos pela população
brasileira, então as empresas interessadas em utilizar insetos na produção de
alimentos devem solicitar junto à Anvisa avaliação da sua segurança".
Ainda segundo o órgão, no
período em que a agência recebeu propostas de temas a serem eventualmente
avaliados em sua agenda regulatória para os anos de 2017 a 2020, não houve
sugestões referentes ao consumo de insetos por humanos.
Além do pão, Andressa diz que
os insetos podem ser usados na fabricação de suplementos alimentares, barras de
cereais, massas, bolos e até mesmo óleos e azeites.
"O mercado para isso é
imenso. A proteína do inseto é isolada e, por isso pode ser adicionada a
qualquer alimento. A gente não espera que as pessoas comam o inseto inteiro,
mas sim a farinha com o que ele tem de bom a oferecer."
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