Para Ana Clara, aqueles sacos cinzas que às vezes vêm
pendurados nos helicópteros são a comida que os bombeiros levam para não
passarem fome durante as buscas. Para Estefany, é onde eles carregam os animais
encontrados mortos na lama.
Está difícil para as famílias responder às duas meninas de 9
anos o que realmente está ali dentro: os corpos das centenas de vítimas que vão
sendo achados pouco a pouco em Brumadinho (MG), em meio aos rejeitos da
barragem da Vale que ruiu há mais de duas semanas.
“Não tenho coragem, não. Eu digo que são as vacas, os bois
que estão tirando”, diz a diarista Cláudia Pereira, 40, mãe de Estefany. Mas
essa não é a única dúvida que ela e outros pais das regiões afetadas da cidade
têm que responder.
A lama vai chegar até aqui? A outra barragem vai estourar? O
que é uma barragem? E se o helicóptero cair em cima da nossa casa? A gente pode
se mudar? As perguntas, comuns entre as crianças que moram nessas áreas, muitas
vezes vêm acompanhadas de choro e insônia.
Sem aulas ainda nas redes municipal e estadual, a ansiedade
aumenta. O ano letivo deveria ter começado na última segunda-feira (4), mas,
por causa do desastre e do bloqueio dos acessos às escolas, só deve se iniciar
a partir desta semana.
O plano da Defesa Civil de Minas Gerais é criar uma rota de
transporte escolar a ser feita por vans da Vale, passando por uma área segura
dentro da mina da empresa -a Prefeitura de Brumadinho desconhecia a estratégia
quando ela foi anunciada. O caminho provisório será feito enquanto uma ponte é
construída pela mineradora.
No Córrego do Feijão, bairro rural mais perto da sede
destruída da Vale, são cerca de 95 alunos sem aulas. A única escola que atende
a comunidade não pôde voltar a funcionar porque está servindo de base e
hospedagem para parte dos bombeiros e socorristas que atuam nas buscas.
Tanto ali quanto no bairro Parque da Cachoeira, também
atingido pela lama da barragem, as crianças estão tendo que lidar com perdas
próximas. Thaís (nome fictício), 7, disse à mãe que espera que o tio
desaparecido esteja “no mato, se escondendo”. Já sua irmã, de dez anos, “não
queria que aquele dia tivesse acontecido”.
Para Luana (nome fictício), 11, não é a primeira das
ausências. “Ela já tinha perdido a mãe e um vizinho, então tem trauma de morte.
Agora vou ver se levo no psicólogo, porque ela tem acordado chorando”, conta a
avó Lucimar Osório, 54.
Com as cenas da lama passando em exaustão na televisão e toda
a movimentação na cidade -que até então era pacata-, não há muito jeito de
controlar as informações que chegam.
“Não adianta desligar a televisão, da porta de casa eles veem
tudo”, diz a dona de casa Juliane Alves, 31.Segundo o terapeuta social Reinaldo
Nascimento, o que as crianças precisam agora é de “ritmo, de relações fortes e
de experiências positivas”.
Também precisam de tempo: “Elas jamais devem ser obrigadas a
falar sobre o que aconteceu. Elas precisam se sentir seguras”, aconselha.
Nascimento faz parte do projeto Pedagogia de Emergência, que
ajuda crianças a retomarem a vida em locais com guerras e catástrofes, como Iraque
ou Faixa de Gaza, por meio de atividades lúdicas. Ele foi a Brumadinho na
última semana para oferecer um workshop com professores de três escolas
particulares.Falou sobre o que é o trauma, suas características, tipos e fases
e, principalmente, sobre como lidar com os alunos na sala de aula. “Muitas
crianças, principalmente as pequenas, nem entendem realmente o que aconteceu.
Estão assustadas porque os pais estão assustados”, afirma.
De acordo com ele, é possível que elas apresentem dores de
cabeça e de barriga, sinais de tristeza e de raiva, dificuldades de atenção e
de concentração. Parte delas também pode voltar a chupar o dedo, fazer xixi na
cama ou pedir para dormir com os pais.
Os sonhos -ou pesadelos- são recorrentes. Estefany, 9, viu um
dos seus piores se concretizar naquela sexta-feira. Alguns dias antes da
tragédia, sonhou com a lama “do lado todinho de lá” do seu bairro. “Acho que
ela ficou com isso na cabeça porque eu sempre falei que tinha medo que
estourasse”, relata a mãe, Cláudia.
A menina desvia o olhar e vira o rosto quando ouve sobre o
assunto, deixando a borboleta rosa pintada na bochecha à mostra. Prefere ir
brincar no pula-pula com os amigos. Enquanto as aulas não voltam, ela participa
das brincadeiras, esportes e atividades culturais nos postos de apoio aos
bairros atingidos.Na tenda montada no Parque da Cachoeira, o Governo de Minas
Gerais e parceiros ofereceram as recreações até a última quarta-feira (6). No
Córrego do Feijão, voluntários e a Vale improvisaram uma sala em um restaurante
desativado.
Parte dos pais reclama das comidas oferecidas às crianças,
como biscoitos e sucos de caixinha, e do fato de os “cuidadores” serem de fora
da comunidade, o que gera insegurança. Outra parte, no entanto, diz que os
espaços temporários são a única distração enquanto as aulas não começam e se
preocupa com a sua retirada.
O barulho dos helicópteros, outro dos pesadelos de muitas das
crianças de Brumadinho, ecoa o tempo todo por ali. “Eles estão vendo que o
nosso céu não tem mais estrelas, tá cheio de corpos pra lá e pra cá. O Sol tem
hora que até some. Tão pequenininhos e já têm uma história tão triste pra
contar”, afirma Juliane, mãe de dois. Com informações da Folhapress.
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