Depois de dois anos de relacionamento, Victor e Kathleen deram no altar o primeiro beijo desde o início do relacionamento
Ela, de vestido e flores no
cabelo. Ele, de terno azul, óculos e alargador na orelha. As mãos entrelaçadas
ajudam a disfarçar o nervosismo do momento mais importante da vida do casal.
"Eu vos declaro marido e
mulher. Agora, os noivos podem se beijar", sentencia o pastor.
Depois de dois anos de
relacionamento, Victor Gustavo Moreno Cordeiro, de 22 anos, e Kathleen
Rodrigues Cordeiro, com a mesma idade, deram no altar o primeiro beijo desde o
início do relacionamento.
Além do veto ao beijo, o
relacionamento de cortejo, como é chamado o tipo de namoro que eles seguiram,
prevê que os namorados não tenham relações sexuais até o casamento e que apenas
se cortejem até o dia do "sim".
A igreja Filadélfia
Internacional G12, da qual eles participam, não obriga os casais a seguir essas
restrições. Mas para eles fazia sentido que fosse assim, já que são os próprios
namorados quem decidem adotar ou não o cortejo.
O casal entrevistado pela BBC
News Brasil tem histórias de superação e experiências traumáticas de
relacionamentos anteriores. O cortejo e o casamento, em novembro de 2020, em
meio à pandemia de covid-19, foram maneiras que ambos encontraram de trilhar um
recomeço.
O casal que escolheu trilhar o
novo relacionamento seguindo o cortejo até o dia do matrimônio se conheceu
justamente na igreja.
Victor fora adotado aos 2
meses de idade por um casal, a pedido da própria avó biológica. Na época, ela
argumentou que a mãe do menino não teria condições financeiras e psicológicas
de criá-lo.
Kathleen perdera o pai de
maneira violenta: ele foi decapitado numa rebelião no presídio de Pedrinhas, no
Maranhão.
Unidos pela igreja
Incentivado pela mãe, Victor
frequentava a igreja desde a infância. O jovem sempre ouvia dela que deveria
namorar alguém que seguisse a mesma religião.
"Eu falava que ela (mãe)
era doida. Que não tinha ninguém que eu gostasse na igreja", lembra Victor
Cordeiro à reportagem.
Até os 9 anos de idade, Victor teve diversas doenças respiratórias, como bronquite, e disse que quase morreu
Já Kathleen recorda das
primeiras vezes que eles trocaram olhares na Internacional G12.
"A gente já tinha se
encontrado, mas nunca se olhado. A gente se conheceu por causa da minha irmã,
em novembro de 2017. Ela é muito brincalhona, já conversava com ele e logo perguntou:
'Victor, por que você não namora minha irmã?'. Eu entrei na brincadeira, mas
ele ficou com vergonha e saiu. Minha irmã disse na época que ele não queria
namorar porque era muito nervoso e estressado. Mas eu também era e
combinamos", conta Kathleen, sorrindo.
Pouco tempo depois, eles
começaram a conversar pelo Instagram e logo depois a conversa migrou para o
WhatsApp, onde se estendia por muitas horas, diariamente.
Depois de um ano, Victor
deixou claro que também gostava dela. Eles então resolveram conversar com a
liderança na igreja sobre ter um relacionamento amigável, para depois namorar e
casar. A Igreja Internacional G12 segue um método de células, com 12
lideranças. Cada uma delas orienta seus membros em diversas questões, inclusive
relacionamentos.
Kathleen tinha medo de se
apaixonar, pois lembrava da frustração de um relacionamento anterior. Mas
deixou o trauma de lado e propor um namoro.
"Eu perguntei se era
aquilo mesmo que ele queria e falei: 'Quer namorar comigo?'. Ele me pediu um
beijo. Eu pedi calma, conversamos com nossos líderes e definimos fazer a
corte", conta ela.
Victor, que trabalha como
orientador socioeducativo, conta que até mesmo os pastores da igreja
questionaram se eles estavam realmente preparados para seguir um relacionamento
tão rigoroso.
"Eles perguntavam como a
gente estava emocionalmente para lidar com isso, essa pressão social.
Explicaram o que era e disse para pensarmos. A pastora sempre teve o desejo de
implementar a corte na igreja, mas fomos os primeiros. Sentamos para conversar
em abril de 2018 e decidimos fazer porque seria uma bênção na nossa vida",
afirma ele.
Victor conta que o cortejo
aumenta a expectativa para o dia do casamento e uma vida a dois. Ele relata que
não beijar e dormir junto torna o matrimônio mais especial.
"Nós já tínhamos passado
por relacionamentos padrão. A corte é uma experiência totalmente diferente.
Você tem estabilidade e firmeza nos objetivos. Você não tem dúvida de quem é a
pessoa que está do seu lado porque conhece a essência dela", afirma.
"Eu perguntei se era aquilo mesmo que ele queria e falei: 'Quer namorar comigo?'. Ele me pediu um beijo. Eu pedi calma, conversamos com nossos líderes e definimos fazer a corte", conta Kathleen
Kathleen argumenta que o
objetivo de um namoro cristão é o casamento. Ela conta ter criado essa
expectativa no primeiro relacionamento que teve, mas se frustrou ao ver que não
era um objetivo em comum.
"Depois disso, comecei a
falar com Deus sobre um namoro com propósito. E a corte tinha outras coisas com
que se preocupar ao invés de sair e se beijar. Procuramos conhecer a família do
outro, estar junto. Muitas pessoas que namoram com toque só se preocupam com
aquilo e ficam anos namorando sem casar. Não significa que um namoro que tem
beijo vai dar errado, mas tem mais probabilidade de focar mais no beijo do que
nos outros propósitos", opina Kathleen.
'À mercê da sorte'
O professor de psicologia do
Mackenzie Leonardo Luiz afirma que a ideia de privar-se do beijo e do sexo
atende à ideia cristã do que é certo e errado, segundo o que prega a Bíblia.
Mas diz que isso pode ter um alto custo.
"É uma configuração muito
arriscada porque o casal não se conhece. E as probabilidades de as diferenças e
desavenças se fazerem presentes no futuro é muito grande. Pode dar muito certo,
como casais que se conheceram rapidamente no Tinder (aplicativo de relacionamentos),
depois casaram e vivem muito bem. Mas esse casal (cortejo) deixa completamente
à mercê da sorte a possibilidade de dar certo ou não", afirma.
O professor explica que essa
privação geralmente está ligada a algo maior que diz ao casal terá uma
recompensa. Essa prática, segundo ele, segue a linha de que, se você agrada a
Deus, sua possibilidade de estar num bom lugar posteriormente é maior.
"Isso gera uma fantasia
da felicidade e a expectativa de que tudo vai dar certo depois do casamento
intensifica esse sentimento. Eu, pessoalmente, tenho sérias restrições a esse
tipo de relacionamento, do ponto de vista psíquico. Pois o toque, o carinho, a
masturbação e conhecer o outro assim é bom para saber se a nossa paixão, o
amor, se constituiu", diz o professor.
"No começo, foi bem difícil. E no final também", diz Victor
Leonardo Luiz ressalta, porém,
que é necessário respeitar a decisão do casal. Mas agrega que o beijo e o sexo
podem ser decisivos na escolha de um parceiro, já que isso fará parte do
cotidiano de ambos durante muito tempo.
"A gente pode comentar
essas decisões, mas não cabe fazer juízo de valor. E vale lembrar que essa não
é uma crítica religiosa, mas é bom que o sujeito encontre no outro através do
toque, da sedução e o prazer que o agrada. Se você beija uma pessoa e não foi
legal, você não querer repetir esse encontro, a menos que a pessoa seja muito
interessante e você queira dar mais uma chance. Algumas configurações
religiosas comprometem as psíquicas nesse sentido", afirma.
O professor de psicologia
também levanta a hipótese de que casais que optam pelo relacionamento de
cortejo também aguardam um "gozo psíquico" pós-casamento.
"Guardadas as proporções,
é algo parecido com o sexo tântrico, quando é promovida uma privação do
ejacular e do orgasmo para causar um prazer mais acentuado. Será que esses
casais não estão aguardando um prazer mais acentuado?", afirma o professor.
Momentos difíceis
O casal que seguiu esse
relacionamento contou à BBC News Brasil que, embora fosse um objetivo mútuo,
não foi nada fácil seguir o cortejo sem um contato mais próximo. Um dos dos
pontos mais difíceis, contou, é resistir ao desejo sexual pelo parceiro.
"No começo, foi bem
difícil. E no final também", diz Victor sorrindo.
"Só de encostar na pessoa
já é preciso ficar esperto porque (o desejo) é bem pesado. O corpo pede aquilo.
É o físico que está pedindo e você tem que trabalhar a mente quando isso
acontece. Tinha dia que eu não queria me encontrar com ela porque o desejo
estava grande. A gente chegou a ficar uma semana sem se ver porque não era bom
ficar perto. A carne é fraca. Mas a gente venceu", diz Victor.
Ele conta que a situação se tornou
ainda mais difícil porque os dois não eram mais virgens.
"Você já teve aquela
sensação antes, então você sabe como é. Isso causa vontade. O corpo pede, mas
não pode. É coisa de maluco mesmo. A gente evitava se abraçar e ficar sozinho
para não criar o desejo. Ficávamos sempre perto dos nossos pais ou em público.
A intenção era criar um ambiente para a gente se sentir bem", aconta.
Kathleen conta que o dia a dia
atarefado do casal também ajudava a evitar a aproximação e o desejo carnal
entre eles.
"Ele trabalhava à noite e
eu sempre trabalhei de dia, então nossos horários não batiam. Depois que a
gente saía juntos, cada um seguia para a sua casa. É um processo difícil. O que
eu adorei nessa experiência foi conhecer ele melhor: as qualidades, os defeitos.
E aceitar. Hoje, nossa amizade é bem maior e nossa intimidade flui", diz a
assistente de departamento pessoal.
Kathleen e Victor no casamento; ele conta que até mesmo os pastores da igreja questionaram se eles estavam realmente preparados para seguir um relacionamento tão rigoroso
Ela conta que frequentemente
respondia a questionamentos de pessoas não cristãs se eles não tinham medo de
se decepcionar com um ato sexual após o casamento. Além de perguntar qual o
motivo de um sacrifício tão grande, já que eles sentiam tanto desejo.
"Nada disso foi uma
preocupação para a gente. Foi apenas o reforço de um relacionamento de confiança
e que Deus não nos deixaria frustrados. Quando as pessoas do relacionamento
confiam em Deus, sabe que ele vai fazer o melhor", opina Kathleen.
Ela relata que neste
relacionamento com o Victor, eles se tornaram amigos. O conheceu com uma
profundidade que não teve com o namorado anterior.
"Na corte, você não tem
essa preocupação de beijar, então você tem mais tempo para conversar, reunir
amigos e estar com a família", diz.
Adotado a pedido da avó
Até os 9 anos de idade, o
menino teve diversas doenças respiratórias, como bronquite, e conta que quase
morreu.
"Sempre fui muito bem
recebido (pela família adotiva), muito amado. Meus pais Cledson e Andressa me
adotaram quando eles tinham 16 anos e só receberam a minha guarda definitiva
quando eu completei 9 anos de idade. Um ano depois, eles tiveram uma filha
biológica, minha irmã Camile Vitória", lembra.
O jovem conhece e convive com
todas as pessoas da família biológica até hoje e que os pais adotivos nunca
impediram esse contato.
Desde a infância, Victor
trabalhou como ajudante no buffet da tia dele, principalmente nas decorações de
festas de casamento. Aos 16 anos, conseguiu um emprego como auxiliar de
escritório em uma multinacional. Depois, trabalhou em uma pizzaria até se
tornar orientador socioeducativo em uma associação comunitária em São Mateus,
no extremo leste de São Paulo, onde está até hoje.
Pai decapitado
Kathleen teve uma infância
simples, mas, nas palavras dela, "em que nunca faltou nada". Ela e a
irmã, que têm 1 ano e quatro meses de diferença, foram criadas sem a presença
do pai durante a maior parte da vida.
aethleen (à dir.) na infância com a irmã e o pai; ele teve passagens pelo sistema prisional e foi morto em rebelião, decapitado
Os pais de Kathleen se
conheceram muito cedo, como os de Victor. A mãe trabalhava como vendedora e
caixa. Mas o pai foi apreendido numa unidade da Fundação Casa, na época a
Febem, assim que ela nasceu. Quando atingiu a maioridade, ele foi solto, mas
preso logo em seguida. Desta vez, o tempo longe das ruas foi maior.
A filha diz não saber quais os
crimes nem as sentenças do pai na época. "Não foi uma coisa que eu
precisava saber", conta. Mas lembra que ele ficou preso por mais de uma
década.
"A gente chegou a
visitar, trocar cartas, mas não era aquela coisa de ter a presença em casa.
Depois de 11 ou 12 anos, ele saiu, mas eu era rebelde e não queria contato
porque a ausência dele na minha vida gerou marcas", contou Kathleen.
Em liberdade, o homem se casou
com outra mulher, com quem teve um filho. Mas também se separou tempos depois e
se mudou para Tocantins.
"Na época, a gente não
entendeu porque ele tinha ido. Mas hoje sabemos que foi para nos proteger das
coisas que ele fazia. No Tocantins, ele roubou banco, caixa eletrônico, e foi
preso de novo. Depois de alguns anos, em 2019, no Dia dos Pais, ele foi morto
no presídio durante uma rebelião. Foi dolorido e até hoje é. Por mais que eu
não tivesse contato, era meu pai e eu queria ele presente", afirma
Kathleen.
A morte do pai de Kathleen
chocou não só a família dela, mas também todos que receberam o vídeo dele
decapitado.
"Reportagens dizem que a
rebelião foi uma forma de eles protestarem porque o presídio reforçou a
segurança. Outros dizem que foi uma briga. Meu pai foi esquartejado, decapitado
e ainda retiraram o coração dele", lembra Kathleen.
A família entrou com uma ação
na Justiça para que o Estado indenize a família, já que o preso estava sob a
tutela do poder público quando foi morto brutalmente.
Tanto Kathleen quanto Victor
agora querem esquecer os momentos difíceis do passado, construir uma família e
ajudar o próximo.
"Quero cuidar de jovens.
Mostrar o caminho de Deus para eles. Tirar as pessoas das drogas, do mundo.
Esse é um dos nossos maiores objetivos como casal. Transformar a vida das pessoas",
disse Kathleen.
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