Grupo voltou ao poder no
Afeganistão após 20 anos
O Talibã, grupo que virou
sinônimo de radicalismo fundamentalista islâmico, voltou ao poder no
Afeganistão após 20 anos. Suas tropas entraram em Cabul pela primeira vez desde
13 de outubro de 2001, quando tiveram de se retirar da capital sob as bombas
norte-americanas e britânicas que abriram caminho para forças adversárias da
chamada Aliança do Norte.
Em 1994, o movimento do Talibã
("estudantes de religião") apareceu no Afeganistão, um país devastado
pela guerra contra os soviéticos (1979-1989) e enfrentando uma luta fratricida
entre mujahedines desde a queda do regime comunista em Cabul, em 1992.
Formados nas madrasas (escolas
corânicas) do vizinho Paquistão, onde esse grupo de islâmicos sunitas encontrou
refúgio durante o conflito com os soviéticos, os talibãs eram liderados pelo
misterioso mulá Mohamad Omar, que morreu em 2003.
O mulá Akhtar Mansur o sucedeu
e foi assassinado em 2016 no Paquistão. Atualmente, o Talibã é liderado por
Haibatullah Akhundzada, enquanto o mulá Abdul Ghani Baradar, co-fundador do
movimento, chefia a ala política.
Como a maioria da população
afegã, são essencialmente pashtuns, o grupo étnico que dominou o país quase
ininterruptamente por dois séculos.
O QUE DEFENDEM?
O Talibã nunca
escondeu o que quer: a ressurreição completa de seu emirado islâmico que
governou o Afeganistão entre 1996 e 2001.
Muitas análises foram
realizadas para determinar exatamente como atingiriam seu objetivo: por meio do
diálogo, da força, ou com uma combinação de ambos.
No final, sua estratégia
militar provou ser suficiente: aplacar as forças do governo com vários ataques
a vários alvos em todo país.
Para isso, primeiro negociaram
a saída de tropas americanas e estrangeiras do território afegão, por
meio de um acordo com os Estados Unidos, país cansado após mais de 20 anos de
guerra. Também prometeram não atacar alvos americanos em troca de sua retirada.
Parte do acordo também
significou que Washington pressionou o governo afegão a libertar milhares de
prisioneiros talibãs. A maioria deles voltou imediatamente às fileiras
insurgentes.
O QUE ACONTECEU COM O EXÉRCITO
AFEGÃO?
Sem dúvida, haverá livros
publicados e palestras proferidas durante anos, senão décadas, sobre este
assunto: o que exatamente deu errado com as forças de segurança afegãs?
A corrupção, a falta de
vontade de lutar e o vácuo criado pela saída dos Estados Unidos provavelmente
tiveram um papel na queda do Exército afegão.
Durante anos, o governo dos
EUA emitiu relatórios, detalhando um grande número de casos de corrupção nas
forças de segurança afegãs.
Os comandantes rotineiramente
ficavam com o dinheiro reservado para suas tropas, vendiam armas no
mercado paralelo e mentiam sobre o número de soldados em suas fileiras.
As forças afegãs também
dependiam totalmente do poder aéreo americano, da logística aos ataques, além
da manutenção das aeronaves.
E, para piorar as coisas, as
forças de segurança afegãs nunca tiveram liderança efetiva e importante.
Eram liderados por civis no
palácio presidencial com pouca experiência militar, ou ignorados por generais
veteranos que pareciam mais envolvidos em lutas políticas mesquinhas do que na
grande guerra que estava por vir. As unidades de comando que os Estados Unidos
treinaram eram a esperança, mas não bastaram.
QUEM SÃO OS LÍDERES?
O funcionamento
interno e a liderança do movimento Talibã estão
envoltos em mistério, como quando governou o país asiático
entre 1996 e 2001.
HAIBATULLAH
AKHUNDZADA, O LÍDER SUPREMO
O mulá Haibatullah
Akhundzada foi nomeado chefe do Talibã em maio de 2016 durante uma
rápida transição de poder, dias após a morte de seu antecessor, Mansour, num
ataque com drone americano no Paquistão.
Antes de sua nomeação, pouco
se sabia sobre Akhundzada, até então mais focado nas questões
judiciais e religiosas do que militares.
Embora esse estudioso já
tivesse grande influência dentro da insurgência, da qual
liderava o sistema judicial, alguns analistas
acreditavam que seu papel à frente do movimento seria mais simbólico
do que operacional.
Filho de um teólogo,
originário de Kandahar, o coração do país pashtun no sul do
Afeganistão e berço do Talibã, Akhundzada rapidamente obteve um
juramento de lealdade de Ayman al-Zawahiri, o líder da
Al-Qaeda.
O egípcio o chamou
de "emir dos crentes", nome que lhe permitiu consolidar sua
credibilidade no mundo jihadista.
Akhundzada teve a delicada
missão de unificar o Talibã, fragmentado por uma violenta
luta pelo poder após a morte de Mansour e a revelação
de que havia escondido por anos a morte do fundador do
movimento, o mulá Omar.
O insurgente conseguiu
manter o grupo unido e continuou bastante discreto,
limitando-se a transmitir raras mensagens anuais nos feriados islâmicos.
MULÁ BARADAR, COFUNDADOR
Abdul Ghani Baradar, nascido
na província de Uruzgan (sul) e educado em
Kandahar, é o cofundador do Talibã junto
com o mulá Omar, que morreu em 2013, mas cuja morte foi
escondida por dois anos.
Como muitos afegãos, sua vida
foi moldada pela invasão soviética em
1979, que o tornou um mujahideen - combatente islâmico
fundamentalista - e acredita-se que ele tenha lutado ao
lado do mulá Omar.
Em 2001, após a intervenção
dos Estados Unidos e a queda do regime talibã, fez parte de um
pequeno grupo de insurgentes disposto a firmar um
acordo que reconhecia o governo de Cabul. Mas esta
iniciativa não teve sucesso.
Abdul Ghani Baradar
era o comandante militar do Talibã quando foi preso em 2010
em Karachi, no Paquistão. Foi libertado em 2018, especialmente sob pressão de
Washington.
Ouvido e respeitado
pelas diferentes facções do Talibã, foi nomeado chefe de seu escritório
político, localizado no Catar.
Do país do Golfo, liderou as
negociações com os americanos, que levaram à retirada das forças
estrangeiras do Afeganistão.
SIRAJUDDIN HAQQANI, CHEFE DA
REDE HAQQANI
Filho de um célebre comandante
da jihad anti-soviética, Jalaluddin Haqqani, Sirajuddin é o número
dois do Talibã e o chefe da rede Haqqani.
Essa rede, fundada por seu
pai, é classificada como terrorista por Washington, que sempre
a considerou a facção combatente mais perigosa diante das tropas dos Estados
Unidos e da Otan nas últimas duas décadas no Afeganistão.
Também é acusado de
ter assassinado algumas autoridades afegãs e de manter ocidentais
como reféns para resgate ou mantê-los como prisioneiros,
como o militar americano Bowe Bergdahl, libertado em 2014 em troca de
cinco presos afegãos da prisão de Guantánamo.
Conhecidos por sua
independência, habilidades de combate e relações frutíferas,
acredita-se que os Haqqani estejam no comando das operações
do Talibã nas áreas montanhosas do leste do
Afeganistão e teriam grande influência nas decisões do movimento.
MULÁ
YAQOUB, O HERDEIRO
Filho do mulá Omar,
Yaqoub é o chefe da poderosa comissão militar do Talibã, que decide
os rumos estratégicos da guerra contra o Executivo afegão.
Sua ascendência, fizeram dele
uma figura unificadora dentro de um movimento amplo e diverso.
As especulações sobre seu
papel exato na insurgência são persistentes. Alguns analistas
acreditam que sua nomeação para a chefia dessa comissão em 2020 foi
apenas simbólica.
CONFIRA CRONOLOGIA DOS
ACONTECIMENTOS
INÍCIO DA RETIRADA DAS
TROPAS
Em 1º de maio de 2021, os Estados
Unidos e a Otan iniciam a retirada de seus 9.500 soldados, incluindo 2.500
americanos, ainda presentes no Afeganistão.
Combates intensos estouram
entre os talibãs e as forças do governo na região de Helmand, no sul. No norte,
os insurgentes tomam o distrito de Burka, na província de Baghlan.
Em 8 de maio, um ataque a uma
escola para meninas mata mais de 50 pessoas em Cabul. As autoridades atribuem o
atentado, o mais mortal em um ano, ao Talibã, que nega.
Em meados de maio, os
americanos se retiram da base aérea de Kandahar, uma das mais importantes do
Afeganistão.
AVANÇO EM JUNHO
Os talibãs tomam dois
distritos da província de Wardak, perto de Cabul, antes de
conquistarem dois distritos da importante província de Ghazni.
Em 19 de junho, diante do rápido
avanço dos insurgentes, o presidente afegão Ashraf Ghani nomeia novos
ministros do Interior e da Defesa.
No dia 22, o Talibã toma o
posto fronteiriço de Shir Khan Bandar (norte), o principal acesso ao
Tadjiquistão. Centenas de soldados afegãos derrotados fogem para o território
tadjique.
Os insurgentes assumem o
controle das outras passagens para o Tadjiquistão, bem como os distritos que
conduzem a Kunduz, capital da província de mesmo nome.
AMERICANOS DEIXAM BAGRAM
Em 2 de julho, as tropas
americanas e da Otan devolvem ao Exército afegão a base aérea de Bagram,
o centro nevrálgico das operações da coalizão, 50 km ao norte de Cabul.
No dia 4, o Talibã conquista o
distrito-chave de Panjwai, a cerca de quinze quilômetros de Kandahar (sul).
PRIMEIRA CAPITAL PROVINCIAL
ATACADA
No dia 7 de julho, o Talibã
entra em Qala-i-Naw, a primeira capital de uma província - a de Badghis
(noroeste) - atacada pelos insurgentes.
No dia seguinte, o presidente
dos EUA, Joe Biden, declara que a retirada de suas forças será
"concluída até 31 de agosto".
No dia 9, os talibãs afirmam
controlar dois grandes postos de fronteira, com o Irã e o Turcomenistão, na
província de Herat (oeste).
De acordo com Moscou, os
insurgentes controlam a maior parte da fronteira do Afeganistão com o
Tadjiquistão.
AEROPORTO PROTEGIDO
Em 11 de julho, as autoridades
anunciam que o aeroporto de Cabul está protegido de foguetes e mísseis por
um "sistema de defesa aérea".
No dia 13, depois da Alemanha,
a França convoca seus cidadãos a deixar o Afeganistão. O Talibã apreende
no dia seguinte um importante posto de fronteira com o Paquistão, no sul.
GRANDES CIDADES
AMEAÇADAS
Em 27 de julho, a Otan pede
uma solução negociada para o conflito, enquanto a ONU alerta para um número
"sem precedentes" de vítimas civis.
Em 2 de agosto, Ashraf Ghani
atribui a deterioração da situação militar à "repentina" retirada
americana, em um momento em que várias grandes cidades estão sob ameaça direta
dos insurgentes.
As embaixadas americana
e britânica em Cabul acusam o Talibã de ter "massacrado dezenas
de civis" no distrito de Spin Boldak, no sul.
No dia seguinte, um ataque
contra o ministro da Defesa, o general Bismillah Mohammadi, mata oito civis em
Cabul. É reivindicado pelo Talibã, que ameaça outras ações direcionadas em
resposta aos bombardeios aéreos do Exército.
CONQUISTAS ESTRATÉGICAS
No dia 6, o Talibã conquista
sua primeira capital provincial, Zaranj (sudoeste). Nos dias seguintes, várias
grandes cidades do norte caem: Sheberghan, Kunduz, Sar-e-Pul, Taloqan, Aibak e
Pul-e Khumri (província de Baghlan), Faizabad, assim como Farah (oeste).
No dia 10, Joe Biden diz não
lamentar sua decisão de deixar o Afeganistão, estimando que os afegãos
"devem lutar por si próprios".
No dia 11, centenas de membros
das forças de segurança se rendem ao Talibã perto de Kunduz. O presidente
Ashraf Ghani chega à cidade sitiada de Mazar-i-Sharif para tentar coordenar a
resposta.
HERAT, KANDAHAR E
MAZAR-I-SHARIF
No dia 12, o Talibã apreende
Ghazni, 150 km a sudoeste de Cabul, depois Herat, a terceira maior cidade do
Afeganistão.
Os Estados Unidos e o Reino
Unido anunciam o envio de milhares de soldados a Cabul para evacuar
diplomatas e cidadãos. Outros membros da Otan também anunciam a evacuação
de funcionários de suas embaixadas.
No dia seguinte, o Talibã toma
Pul-e-Alam, capital da província de Logar, apenas 50 quilômetros ao sul de
Cabul, após tomar Lashkar Gah, capital de Helmand, e Kandahar, a segunda cidade
do país.
No dia 14, Ashraf Ghani
promete remobilizar o Exército contra o Talibã. Mas nas horas que se seguiram,
os insurgentes conquistam sucessivamente Mazar-i-Sharif (norte) e Jalalabad
(leste), a última grande cidade ainda controlada pelo governo.
Neste dia 15,
o presidente afegão, Ashraf Ghani, deixou o Afeganistão. Nesta
segunda-feira (16), milhares de pessoas desesperadas seguiram para o aeroporto
de Cabul para tentar sair do país, poucas horas depois de a capital do
país ser controlada pelos talibãs.
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