Um homem foi resgatado do
trabalho análogo ao de escravo em uma fazenda de gado durante uma operação de
fiscalização, em Formosa (GO), após mais de oito anos de serviço. Ele vivia com
sua esposa e cinco filhos dormindo entre escorpiões e cobras, sem água e luz,
com pouca comida e sob a poeira da mineração de calcário que ocorria perto de
seu alojamento. Enquanto isso, no mesmo município, as Forças Armadas realizavam
um treinamento militar que contou com a presença do presidente da República.
"Escorpião era demais,
tinha muito. Um me picou e fiquei seis meses com a perna dormente. Já acordei
com cobra no pescoço. Tinha coral, papa-pinto... Se não forrasse o chão e
tapasse os buracos da casa todos os dias, os escorpiões picariam meus meninos.
Dormia todo mundo no mesmo lugar. Assim eu ficava de olho nos bichos."
O relato é de Marilene da
Costa, esposa de Itamar, trabalhador que foi resgatado na operação iniciada no
dia 11, em Formosa. Todos passaram anos usando o mato como banheiro, sem
energia elétrica e consumindo água salobra de um poço.
Certamente você ouviu falar no
município. Enquanto auditores fiscais do Ministério do Trabalho, um procurador
do Ministério Público do Trabalho, um integrante da Defensoria Pública da União
e agentes da Polícia Federal retiravam o trabalhador e sua família da
propriedade, a Marinha fazia uma operação de treinamento militar em Formosa,
com a participação do Exército e da Força Aérea.
Foram os blindados fumacentos
da Operação Formosa que atravessaram a Esplanada dos Ministérios na
"demonstração de força" de Jair Bolsonaro no dia da derrota
do voto impresso na Câmara dos Deputados.
Tão alheia à existência das
tropas quanto às tropas estavam alheias à sua existência, a família esperava a
visita do poder público. "Fiquei oito anos sofrendo que nem cachorro. Só
no finalzinho, vieram o Conselho Tutelar e a Assistência Social. E, com isso, chegou
água e luz", explicou a esposa do trabalhador à coluna.
Ironicamente, após mais de
oito anos sob velas, as lâmpadas chegaram uma semana antes da operação de
fiscalização chegar e constatar o trabalho degradante. A denúncia partiu de um
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
O proprietário da fazenda
Muzungo, Meroveu José Caixeta, informou através de seu advogado Ítalo Xavier
que, até o momento, não teve acesso integral aos autos do procedimento de
inspeção. O representante afirmou que "o cliente colaborou com os
trabalhos da fiscalização, firmando Termo de Ajuste de Conduta com o Ministério
Público do Trabalho, para atender todas as exigências que entenderam
pertinentes".
Um pó branco cobria roupas,
comidas e pessoas
Além dos bichos peçonhentos,
da falta de comida, da água salgada e da escuridão, havia o pó. Muito pó.
A precária casa, em que
caberia apenas uma pessoa, ficava a menos de 100 metros de uma empresa de
mineração, vizinha à fazenda, e a 200 metros do canteiro de extração de
calcário. A produção, que seguia barulhenta dia e noite, levantava uma nuvem de
pó branco, que cobria comidas, roupas, pessoas.
"A quantidade de pó era
impressionante", afirma a auditora fiscal Andréia Donin, coordenadora da
operação. A filha de 13 anos do casal tem bronquite asmática e sofria com a
poeira intensa - os outros filhos têm 16, 8, 7 e 4 anos.
A situação da saúde da família
está sendo investigada por conta da exposição prolongada do produto.
"Toda hora você tinha que
limpar a casa e ficar com pano no nariz porque era pó demais", afirma
Marilene. "Eu tô com caroço no pescoço, perdendo a voz. Fui ao médico e
ele disse que isso foi causado pela poeira. Tenho que ir pra Goiânia para
operar, mas quem vai ficar com as crianças?"
O procurador do trabalho Tiago
Cabral, que acompanhou a ação, diz que tem constatado uma piora nas condições
oferecidas aos trabalhadores. Segundo ele, há patrões que acreditam que, para
os trabalhadores, basta a replicação da miséria.
"Eles não conhecem seus
direitos, são vítimas fáceis do trabalho escravo. O pai da família havia sido
vítima de trabalho infantil. É a receita da superexploração. O empregador
sabendo dessa situação colocou o trabalhador próximo de um local com extração
mineral, aspergindo poeira sílica", afirma.
Marilene considera que a pior
coisa foi ver o sofrimento dos filhos.
"Tenho dois filhos que
nem sabem o que é uma televisão. Olhava para eles e chorava muito. No tempo da
chuva, a gente tinha que ficar enrolado num canto porque a goteiragem era demais.
Muita muriçoca, muito inseto. O fogão de lenha era dentro, tinha fumaça demais.
Pó da firma [de mineração] e a fumaça do fogão... Sempre pedíamos uma casa
melhor, e não faziam nada", afirma.
"Se o senhor visse a
casa, ia ficar besta. Eu mandava meus filhos pra escola com roupa de
goteira."
Uma casa nova para a família
como indenização por danos morais
De acordo com Andréia Donin,
quando a fiscalização chegou ao barraco, a única carne disponível estava
secando ao sol, com pó, pois não havia geladeira. Apesar de ser uma fazenda de
gado, a família conseguiu o produto através de uma doação na feira.
Outro trabalhador morava com
sua família na fazenda, mas em uma casa com boas condições e longe do pó da
mineradora. Ele não estava em condição de escravidão.
Itamar recebia R$ 50 por
diária de serviço, mas não tinha carteira assinada, nem contrato de trabalho
apesar do longo relacionamento com o empregador. Segundo a fiscalização, havia
um acordo fraudulento de quitação de verbas trabalhistas, que foi desprezado
para o cálculo das verbas rescisórias e direitos devidos. Ele recebeu R$
24.921,84.
Ele também terá direito a três
meses de seguro-desemprego concedido a resgatados da escravidão.
Somado a isso, o Ministério
Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União fecharam um acordo para uma
indenização por danos morais que garantirá uma casa no valor de, pelo menos, R$
100 mil trabalhador a ser comprada ou construída no município em um prazo de
seis meses.
"Se não entregarem em
seis meses, o acordo estipula uma multa diária de R$ 1 mil até a entrega do bem
com o valor revertido ao trabalhador", afirma Tiago Cabral.
O título de propriedade ficará
no nome dos cinco filhos do casal. "Como o trabalhador muda com a família,
a família sofre com a degradação e a negação dos direitos básicos, como uma
moradia com a mínima condição de habitabilidade", explica o procurador.
Trabalho escravo hoje no
Brasil
De 1995, quando o Brasil
reconheceu diante das Nações Unidas a persistência do trabalho escravo em seu
território e o governo federal criou o sistema nacional de verificação de
denúncias, até o final do ano passado, mais de 56 mil trabalhadores foram
resgatados segundo dados do Radar SIT - Painel de Informações e
Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, ligado ao Ministério da
Economia.
De acordo com o artigo 149 do
Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui:
trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por
dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições
degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e
a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado
à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Trabalhadores têm sido
encontrados em fazendas de gado, soja, algodão, cana, café, frutas, erva-mate,
batatas, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a
siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em
oficinas de costura, em bordéis. A pecuária bovina é a principal atividade
econômica flagrada com trabalho escravo desde 1995.
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