Titular
filmava as ações policiais e publicava as encenações nas redes sociais como se
fossem verdadeiras
Colegas afirmam que delegado só comparecia ao trabalho em dias de operação, nos demais dias dizia estar ocupado produzindo vídeos para o YouTube
Famosos nas
redes sociais, o delegado da Polícia Civil de São Paulo, Carlos Alberto da
Cunha, de 43 anos, conhecido como Da Cunha, simulou operações e inventou
a prisão de um chefe de uma organização criminosa paulista, em 2020,
para criar vídeos para o canal que mantém no YouTube.
Em uma das
gravações, realizada em julho do ano passado, o delegado aparece executando
uma operação de resgate na comunidade de Nhocuné, Zona Leste
da capital. A vítima, um homem sequestrado no dia anterior por um criminoso
membro de uma facção, seria submetida ao chamado "tribunal do crime",
mas é libertada pelo agente e o suspeito é preso.
Em
depoimentos obtidos pelo jornal Folha de S. Paulo, policias
envolvidos na operação e a própria vítima declararam que a cena não passou de
uma encenação, uma de muitas interpretadas por Da Cunha no
exercício da função com intuito de ganhar seguidores nas redes sociais.
Na operação
realizada na comunidade paulista, a vítima já fora libertada momentos
antes por outros polícias civis, identificados como Patrick e Ronald, mas foi
instruída a voltar para o cativeiro, em poder do sequestrador, para
que a simulação em que o delegado é responsável pela prisão fosse filmada.
Segundo a
vítima, Da Cunha afirmou que a encenação era necessária para a produção
de prova material que seria anexada no processo.
“Acreditando
que realmente se tratava de prova policial, aceitou e foi deixado pelos
policiais novamente dentro da casa com o traficante. [...] Acha que isso foi
uma falha dos policiais, pois foi deixado no mesmo local que uma pessoa
perigosa e ele poderia ter pego uma faca para lhe ferir”, declarou a vítima,
que teve o nome preservado, segundo trecho de depoimento em poder do Ministério
Público.
“Depois soube que a gravação não era para o processo, mas, sim, para o canal do YouTube do delegado Da Cunha e isso lhe deixou extremamente indignado, especialmente porque o delegado mentiu sobre a gravação. [...] Frisa que o que policial que realmente o libertou do cativeiro [nem] sequer participou daquela gravação”, acrescentou, no início deste mês.
Colegas afirmam que delegado só comparecia ao trabalho em dias de operação, nos demais |
Dois
policias civis que participaram da simulação confirmaram a fraude.
Um deles era o então braço-direito de Da Cunha na equipe da Central
Especializada de Repressão a Crimes e Ocorrências Diversas (Cerco), o delegado
Denis Ramos de Carvalho. O outro era o chefe dos investigadores, Renato Araújo
de Lima.
Segundo os
depoimentos dos agentes, ambos tentaram convencer o delegado a desistir da
ideia da encenação. Eles ainda detalharam que a simulação postada nas redes
sociais foi a segunda feita por eles — na primeira, os
policiais esqueceram de tirar as algemas do sequestrador.
COMPARECIA
NOS DIAS COM OPERAÇÕES
Ainda
conforme o Carvalho, Da Cunha praticamente só comparecia ao trabalho nos
dias em que operações eram realizados, com intuito de filmar a ação. Nos outros
dias ele afirmava estar ocupando produzindo conteúdo para o
canal no YouTube.
Lima
confirmou que o agente geralmente só ia ao trabalho nos dias de operações.
Ainda segundo ele, as encenações como a da comunidade de Nhocuné eram rotineiras,
e mesmo quando não participava diretamente de uma ação de sucesso, Da Cunha
aparecia no local com uma equipe particular de reportagem.
Da Cunha quer seguir carreira política e ser governador
O
comportamento do delegado incomodou parte da equipe do Cerco, e dois policiais
pediram transferência.
“Pediram
para serem transferidos diante daquela situação vexatória de simulação de
ocorrências que já haviam sido realizadas legitimamente por policiais civis
apenas para dar visibilidade de forma inverídica ao dr. Carlos Alberto da
Cunha, que se portava mais como um repórter/apresentador e ainda simulando ser
o autor das ocorrências policiais, desprezando o trabalho das equipes policiais
do Cerco”, diz trecho do depoimento de Lima.
ENRIQUECIMENTO
ILÍCITO
As
declarações integram o inquérito da Promotoria que apura o suposto enriquecimento
ilícito de Da Cunha. Os promotores desejam apurar se ele usou a
estrutura da Polícia Civil para proveito próprio, como ganhar dinheiro monetizando
vídeos de operações oficiais, o que seria irregular.
O delegado
já negou, em outras oportunidades, que tenha monetizado os conteúdos sobre as
operações e afirmou que só o fez após ser afastado da função.
Da Cunha
foi afastado do cargo em julho deste ano após a Corregedoria
abrir uma série de procedimentos contra ele, a maioria por suposto uso indevido
das redes sociais. Em seguida, ele pediu licença sem vencimento e se filiou ao
MDB com intuito de disputar um cargo eletivo. Segundo ele, quer ser
governador.
PRISÃO DE
CHEFE DE FACÇÃO
Outro envio
de sucesso no canal do delegado é a suposta prisão do Jagunço
do Savoy, que seria chefe de uma organização criminosa paulista que tinha a
missão de assassinar o chefe da Polícia Civil de São Paulo, o delegado-geral
Ruy Ferraz Fontes.
Segundo o investigador-chefe, a Polícia nunca prendeu o criminoso. Em abril de 2020, um homem chamado Wislan Ramos Ferreira, 29 anos, foi detido, mas ele não se tratava do Jagunço do Savoy, esclareceu Lima.
O
investigador afirmou que, ao contrário do que consta no boletim de ocorrência
da prisão de Ferreira, Da Cunha não teve acesso aos manuscritos do Ministério
Público com a ordem para que o Jagunço do Savoy matasse o delegado-geral.
Delegado teria mentido sobre prisão de Jagunço do Savoy, suposto chefe de uma organização criminosa paulista |
Em
depoimento ao MP, Ruy Ferraz Fontes, o suposto alvo, afirmou que o delegado
mentiu. Disse ainda que, conforme o relatório de visualizações do YouTube,
o canal do delegado afastado ganhou projeção justamente com a veiculação da
falsa prisão do Jagunço do Savoy.
“O relatório
torna claro que o dr. Carlos Alberto da Cunha somente tornou-se uma celebridade
no YouTube veiculando o vídeo noticiando que havia prendido o tal ‘Jagunço’
encarregado de matar o depoente, que é o delegado-geral de Polícia, conforme se
depreende dos documentos ora juntados e relatórios policiais demonstrando que
se trata de uma mentira que expõe toda a instituição da Polícia Civil e
tumultua os trabalhos da instituição policial”, declarou.