Mãe de 11,
avó de 19 e bisavó de dois, dona Maria voltou à sala de aula aos 40 anos para
ajudar as crianças e tomou gosto: "Sonhei e deu certo"
“Eu sonhei e
deu certo. Sonhei e fui sonhando, fui sonhando até que chegou o dia”. Essas são
as palavras de Maria Clara de Santana, ou somente Dona Maria. Esse sonho ao
qual ela se refere tem nome: conhecimento. O amor pela sala de aula, seja na
carteira do aluno ou na mesa da professora, levou Dona Maria muito longe. Aos
76 anos, já com 11 filhos, 19 netos e 2 bisnetos, ela conquistou o diploma
universitário e se tornou pedagoga. A formatura aconteceu em agosto deste ano e
ela não pretende parar por aí.
A jornada
até o dia da formatura não foi nada fácil. “Às vezes uma pessoa me dizia:
‘Mulher, deixa isso para lá, vai procurar o que fazer!’. Aí, eu respondia: ‘Vá
procurar o que fazer você, que eu aqui já procurei’”, conta Dona Maria. Além
dos olhares e das falas maldosas na rua, ela também teve que enfrentar o
preconceito vindo de alguns parentes e até do marido dentro de casa, o
agricultor Antônio Xandu, que lhe rendeu o apelido também de Maria de Xandu.
“Era uma confusão. Eu deixava o café pronto, tudo arrumado e saía. Com o tempo
ele foi se acostumando. Mas foi um sofrimento para mim”, relembra.
Uma das
filhas, a advogada Luciane Santana, 46, reforça os obstáculos que a mãe teve
que vencer e diz que Dona Maria lutou não somente pela própria educação, mas
também pela dos filhos. “Eu tenho muito orgulho dela, fico emocionada com as
conquistas. Essa mulher sofreu muito. Meu pai era muito machista, não deixava
ela fazer nada, limitava as saídas dela. Os filhos homens tinham bicicleta e as
meninas não. Ela lutou muito, se aproximou da escola para ajudar os filhos a
não desistirem de estudar porque ele mesmo não queria que a gente frequentasse
a sala de aula”, afirma Luciane.
E foi
justamente o casamento, as tarefas domésticas e o cuidado com os 11 filhos que
afastaram dona Maria dos estudos. Ela conta que fugiu de casa e abandonou a
escola em Ribeira do Amparo, onde nasceu, quando se casou, aos 21 anos, deixando
o Primário (atual Ensino Fundamental I) pela metade. “É que na minha época era
diferente. Entrei na escola com uns 8 anos e era roça. Não tinha carro, não
tinha professora direito, então nem sempre tinha aula”, explica.
Dona Maria se afastou da sala de aula, mas o sonho de concluir os estudos nunca
se afastou dela. “Era um filho atrás do outro, uma escadinha, então meu marido
negociava comigo e eu ficava em casa cuidando dos meninos, mas sempre naquela
vontade de completar meu primário”, diz ela. Quando a Educação de Jovens e
Adultos chegou em Cipó, cidade onde mora, uma porta se abriu.
Quando já tinha 40 anos, dona Maria cursou mais dois anos de primário,
concluindo essa etapa. Era hora de buscar o ginásio (atual Ensino Fundamental
II). “E eu não queria parar por ali. Cheguei em casa depois da festinha de
conclusão e falei com meu marido. Ele me disse: “Rapaz, vá procurar o que
fazer. Para quê fazer ginásio? Você já tem o primário. Quer o quê mais?”,
conta.
Mas ela foi persistente. Quando foi matricular o filho, aproveitou o momento e
fez também a sua própria matrícula. “Eu fui também para incentivar meu filho,
mas ele não quis mais, arranjou uma namorada e me deixou na mão. Mas eu
continuei lá”, diz, orgulhosa. Aos 50 anos, mais uma conquista: Dona Maria
concluiu o ginásio.
A próxima
etapa foi o magistério (curso de nível médio para formar professores para a
educação infantil). E logo ela foi trabalhar. Primeiro, surgiu uma vaga numa
creche perto de sua casa, mas ela não queria cuidar de crianças, isso ela já
fazia em casa. “Era só para dar banho em criança, trocar fralda, pentear
cabelo. E eu bati o pé que queria uma sala de aula e consegui. Me deram 30
alunos”, diz.
Do
bordado á faculdade
Foram sete anos como professora da rede pública, até que a administração mudou
e dona Maria preferiu se afastar. Ficou em casa bordando e costurando, mas a
chama que a movia para correr atrás dos seus sonhos ainda não tinha se apagado.
Cipó ganhou a sua primeira faculdade e Dona Maria não pensou duas vezes. Recebeu
apoio de uma colega e da filha e se matriculou no período noturno.
Durante quatro anos, de dia ela cuidava da casa e do marido, que passou a
contar com a ajuda de uma cadeira de rodas. De noite, Dona Maria vestia a capa
de estudante e ia encontrar os colegas na faculdade. Por diversas vezes, virou
noites estudando. No meio do caminho, o marido acabou falecendo. Com apoio,
persistência, talento e humildade para pedir ajuda, ela conseguiu realizar o
sonho.
“Era uma meta dela, talvez também uma forma de se sentir viva e se manter ativa
porque é uma mulher com espírito jovem, à frente do seu tempo. Meu pai faleceu
e ela ficou muito doente também durante um período, foi até hospitalizada, e
tudo que ela pensava era que precisava terminar o curso”, conta a professora
Maria Conceição Santana, 40 anos, filha de dona Maria.
A coordenadora do curso de pedagogia, Iracema das Neves, 43 anos, é só elogios
para a aluna. “Ela sempre foi muito comprometida com os estudos. É uma
inspiração para todo mundo aqui, um presente em nossas vidas. Muita gente a
desafiou, criticou, duvidou, e isso acabou sendo um estímulo para ela”, diz.
Na festa de formatura, finalmente, só tinha espaço para a alegria. As
comemorações pararam a cidade. “Só deu eu. Falei, cantei, fui oradora. Achei
que iam mangar de mim, mas eu fui a estrela! Eu fiquei tão bonita. Já com 76
anos, mas fiquei parecendo que tinha a idade de minhas filhas”, diz Maria,
rindo. Quando questionada sobre os planos para o futuro, ela responde, sem
demora: “Quero trabalhar no ano que vem, mas só com ensino presencial. E se
tiver pós-graduação, eu ainda vou lá!”.