Estima-se
que resistência a antibióticos cause 700 mil mortes a cada ano; caso problema
não seja sanado, óbitos podem chegar a 10 milhões em 2050.
Superbactérias são consideradas ameaça global
Um grupo de
pesquisadores em Portugal identificou em cachorros a presença de um gene que
oferece às bactérias resistência contra a colistina, um antibiótico geralmente
usado como último recurso no caso de ineficácia de medicamentos.
O estudo
sobre a descoberta foi apresentado pela microbiologista
Juliana Menezes, da Universidade de Lisboa, na edição deste ano do Congresso
Europeu de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas. O trabalho ainda não foi
revisado por outros cientistas.
Menezes e
sua equipe analisaram amostras de 102 cães e gatos e de 80 pessoas na capital
portuguesa entre fevereiro de 2018 e fevereiro de 2020. Do total, 12 amostras
apresentaram resistência à colistina (também conhecida como
polimixina).
Em dois
casos, o gene MCR-1 foi identificado tanto nos donos quanto nos animais
domésticos, que apresentavam lesões na pele ligadas à bactéria Escherichia
coli (E. Coli, bactérias que residem normalmente no
intestino de pessoas saudáveis, mas que podem causar ocasionalmente infecção no
trato digestivo, no trato urinário ou em muitas outras partes do corpo). Os
cachorros foram tratados com sucesso e os donos deles não apresentaram sinais
de infecção.
"Esses
humanos e cães, se estão em contato direto, podem transmitir bactérias contendo
o gene mcr-1 a outros humanos, cães, outros animais e ao meio
ambiente e potencialmente representar um risco para a saúde pública",
afirmam os pesquisadores, sobre o risco de animais domésticos e humanos se
tornarem reservatórios dessas características resistentes a múltiplos
antibióticos.
O temor dos
especialistas é que esse gene MCR-1, resistente à colistina, chegue a bactérias
que já são resistentes a outros tipos de antibióticos, criando micróbios talvez
intratáveis.
Mas como
esses micróbios, encontrados anteriormente em animais criados em fazendas,
chegaram aos animais que vivem em ambientes domésticos?
Há diversas
hipóteses, mas nenhuma delas foi comprovada ainda. Uma suspeita seria a seleção
gerada pelo uso frequente de antibióticos em um ambiente onde já existem essas
bactérias resistentes e, por extensão, a propagação desses indivíduos
"selecionados".
Outra
possível explicação estaria ligada à comida. Um estudo de pesquisadores da
Universidade do Porto, sem relação com o trabalho da Universidade de Lisboa,
foi apresentado também no Congresso Europeu de Microbiologia Clínica e Doenças
Infecciosas e analisou a hipótese de que esse tipo de transmissão de bactérias
resistentes a diversos antibióticos (sem incluir a colistina) pode ocorrer por
meio da ração, seja úmida, seca ou crua (está com taxas mais altas).
Resistência a antibióticos aumentou nos últimos anos
Segundo os
cientistas, análises genéticas dessas bactérias resistentes descobertas nas
rações apontaram semelhanças com superbactérias encontradas em pacientes
hospitalares no Reino Unido, na Alemanha e na Holanda.
Para eles, a
alta incidência de bactérias resistentes em diversas amostras de alimentos para
cães aponta "a necessidade de revisão da escolha de matérias-primas, de
práticas de fabricação e da higiene em um crescente setor de alimentos ao redor
mundo."
O problema
de saúde pública ligado ao gene MCR-1 ganhou notoriedade em 2015, quando
pesquisadores da China encontraram porcos e frangos de fazendas uma "alta
prevalência" de Escherichia coli com o gene que lhe
oferece resistência à colistina.
O gene também
tem potencial de se alastrar para outras bactérias, como a Klebsiella
pneumoniae e Pseudomonas aeruginosa.
O MCR-1 foi
encontrado em 166 de 804 animais analisados, e em 78 de 523 amostras de carne
crua.
Nos humanos,
a incidência foi menor, mas se mostrou presente — em 16 amostras de 1.322
pacientes hospitalizados. Essa diferença, segundo os pesquisadores, indica que
o caminho das bactérias resistentes partiu dos porcos e frangos para depois
chegar às pessoas.
A
resistência à colistina, por exemplo, vem sendo detectada há anos. Mas a
diferença em 2015 foi que a mutação surgiu numa forma em que é facilmente
compartilhada entre bactérias. Elas possuem várias estratégias muito mais
poderosas para enfrentar situações adversas, sendo uma delas a transferência
horizontal de genes, que faz com que bactérias de diferentes espécies troquem
DNA que pode ser útil para elas.
"Se o
MRC-1 se tornar global, o que é uma questão de tempo, e se o gene se alinhar
com outros genes resistentes a antibióticos, o que é inevitável, então teremos
provavelmente chegado ao começo de uma era pós-antibiótico. E se nesse ponto um
paciente estiver gravemente doente, por exemplo, com E. coli, não haverá
praticamente nada a se fazer", diz Timothy Walsh, professor de microbiologia
médica e resistência a antibióticos da Universidade de Cardiff, que atuou no
estudo realizado na China.
Antes da era
dos antibióticos, as infecções bacterianas eram a principal causa de morte no
planeta. E especialistas temem que isso possa voltar a ocorrer. Se bactérias se
tornarem completamente resistentes a tratamentos - o chamado "apocalipse
antibiótico" -, a medicina pode ser lançada novamente em uma espécie de
"Idade Média".
Cientistas têm tentado detalhar os caminhos pelos quais bactérias resistentes passam de outros animais para os humanos
Em 1945, em
discurso após ganhar o Prêmio Nobel de Medicina, o próprio inventor dos
antibióticos, Alexander Fleming, alertou que seu uso indevido poderia
selecionar bactérias resistentes.
Em 2014,
estimou-se que a resistência aos antibióticos causava 700 mil mortes a cada ano
e que esse número aumentaria para 10 milhões de mortes por ano até 2050. Ou
seja, uma pessoa a cada três segundos.
E os custos
que a resistência a antibióticos representa chegarão a US$ 100 trilhões (R$ 507
trilhões em valores atuais), segundo essas estimativas.
O problema é
que não estão sendo desenvolvidos novos medicamentos, e os que existem estão
sendo desperdiçados com uso indiscriminado. Nos EUA, por exemplo, 70% dos
antibióticos são usados em animais.
"Sabemos
que o uso excessivo de antibióticos aumenta a resistência e é vital que sejam
usados com responsabilidade, não apenas na medicina, mas também na medicina
veterinária e na agricultura", diz Menezes, da Universidade de Lisboa, em
comunicado.