Muitos
estudos no campo da nutrição são indigeríveis; há os que sugerem que consumir
um ovo por dia encurtaria expectativa de vida
Desculpe-me
pelo trocadilho, caro leitor, mas muitos estudos no campo da nutrição são
indigeríveis. Há os que sugerem que consumir um ovo por dia encurtaria nossa
expectativa de vida em seis anos, e, por outro lado, os que apontam que ingerir
12 avelãs diariamente nos faria 12 anos mais longevos (um ano para cada
frutinha!). Seriam esses resultados minimante plausíveis?
Tendo essa
pergunta retórica como pano de fundo, John Ioannidis, proeminente cientista da
Universidade Stanford, tem duramente criticado não somente os achados
inverossímeis de famosos estudos nutricionais populacionais, mas especialmente
suas falhas metodológicas.
Segundo
Ioannidis, as conclusões exorbitantes geradas por esses estudos devem-se, antes
de tudo, a uma falha de análise e interpretação. Em geral, estudos
populacionais são de natureza associativa. E a associação entre duas variáveis
não necessariamente implica causalidade entre elas. Vejamos este exemplo. No
passado, o consumo de café foi correlacionado com risco aumentado de câncer. À
época, muitos concluíram que a bebida causava a doença. As suspeitas somente
seriam encerradas com a constatação de que o hábito de tomar um cafezinho
frequentemente acompanha o do tabagismo —voilà!, este sim o fator causal por
trás da espúria associação.
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Os fatores
de confusão (o tabagismo no exemplo anterior) —cujo nome faz jus ao efeito que
exercem na interpretação de resultados— são abundantes na ciência da nutrição.
Alguns estudos clássicos californianos das décadas de 1960 a 1980 atribuíram ao
consumo de tomates, legumes, grãos, alimentos integrais, etc a maior
longevidade de fiéis adventistas comparados a não religiosos.
Porém, as pesquisas também revelaram que os cristãos, em média, bebem e fumam menos, praticam mais atividade física e apresentam menores taxas de obesidade. Decerto, o conjunto desses fatores que compõem o estilo de vida —e não o consumo de um alimento pontual— explica muito melhor por que adventistas tendem a viver por mais tempo.
Em estudos
nutricionais de observação, os tais fatores de confusão são difíceis, se não
impossíveis, de serem controlados, quase sempre gerando resultados exagerados
ou ambíguos, o que só faz confundir a população. A tal história do ovo que te
faz bem hoje, mas te mata amanhã...
Como nos
lembra Ioannidis, há mais de 250 mil alimentos que podem ser diariamente
consumidos em milhões de combinações diferentes, a partir de preparações
culinárias diversas, resultando em respostas biológicas praticamente
imprevisíveis. Mas esse "detalhe" é frequentemente ignorado por
pesquisadores que, a partir da avaliação da diversificada e complexa dieta das
populações, elegem um único alimento (ex. ovo) ou, ainda pior, um de seus
nutrientes (ex.: colesterol) como capaz de modular o risco de doenças ou morte.
Ioannidis é
cirúrgico em revelar as chagas das quais padecem os estudos nutricionais, pondo
em xeque diretrizes dietéticas mundiais, que se baseiam na literatura
existente. Mas o que viria da implosão da área? Na visão do cientista, a
"radical reforma da ciência da nutrição" compreenderia duas frentes:
a ampla e transparente reanálise dos estudos observacionais publicados,
ponderando-se a real influência dos fatores de confusão nos resultados; e a concentração
de esforços e financiamentos em estudos de larga escala, com desenhos
randomizados e enfoque em padrões nutricionais, em vez de num único alimento ou
nutriente.
Não há
dúvidas de que a proposta de reforma tem o potencial de gerar evidência mais
qualificada para subsidiar a construção de melhores políticas públicas
nutricionais. Contudo, é sempre bom lembrar que achados científicos não são
prontamente intercambiáveis entre populações, haja vista as profundas
particularidades da alimentação em cada pedaço de mundo.
O eficiente
enfrentamento dos nossos atuais problemas nutricionais de saúde pública, que
envolvem, entre outros, a obesidade e a insegurança alimentar, depende mormente
de conhecimento produzido por estudos robustos locais. É para dar conta deste
tipo de desafio social que a comunidade científica brasileira tem
incansavelmente cobrado por financiamento adequado.