Com tornozeleira eletrônica, mulheres são expulsas de lugares onde moram na Bahia

São 163 mulheres monitoradas no estado e expulsão ocorre porque 'chefes do tráfico' não as querem por perto; entenda

 


É uma questão de sobrevivência: mudar, morrer ou voltar para o crime. Entre as opções, Lurdes* escolhe a primeira. Os criminosos que dominam a região também querem que ela mude. Mas não basta vontade. Para sair do bairro, Lurdes, que é monitorada por uma tornozeleira eletrônica, precisa de autorização judicial. Há oito meses, ela espera uma. 

Todos os dias, repete o mesmo ritual de acessar o site da Justiça e ver o andamento do pedido de mudança de endereço. “Ele [o juiz] não olha”, reclama. Quando saem da prisão, as mulheres não são bem aceitas nos lugares onde moravam, se usarem tornozeleiras. Se a notícia de que são monitoradas corre, são forçadas a sair do bairro. Elas são associadas a operações policiais.

Na prática, essa associação da tornozeleira com a presença da polícia não encontra base. Mas a verdade é que Lurdes, que mora em um bairro do Subúrbio Ferroviário de Salvador, só veste saias e vestidos compridos para evitar problemas. Sem a resposta pela qual espera diariamente, o tempo passa e a pressão do crime sobre ela continua. 

“Eles [os criminosos] me dizem: 'é, morena, está aqui, mas não venha trazer polícia'. Em poucas palavras, a gente entende o recado. Eu preciso me mudar”.

Na Bahia, são 163 mulheres com tornozeleira depois de cometerem algum delito, segundo a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap). 

Durante os dois anos de liberdade, Lurdes mudou de endereço três vezes. Em todos os bairros, todos nas periferias de Salvador, sofreu ameaças. Na linguagem do crime, não é preciso verbalizar o “vá embora”. 

“As ameaças são constantes. Há casos de mulheres que tiraram a tornozeleira no Instituto Médico Legal [IML], mortas”, diz Luz Marina, coordenadora do Escritório Social da Bahia, equipamento estadual voltado para a ressocialização de egressos do sistema prisional que envolve órgãos como a Seap (administradora), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e o Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

Para aquelas que buscam um destino diferente, o Escritório Social, no bairro de Brotas, é um destino em comum. Costumam chegar sozinhas lá, sem apoio da família ou dos companheiros. Com os homens, é diferente. A solidão é uma companhia mais próxima das egressas. 

"A rejeição da comunidade é mais gravosa para as mulheres. Os homens acabam tendo uma aceitação maior. O pedido de mudança de endereço que chega até nós é porque elas são associadas à presença da polícia num ambiente", explica Pedro Casali, coordenador da Especializada Criminal de Execução Penal da Defensoria Pública da Bahia. 

É na Defensoria que se concentra a busca por assistência jurídica. Até 2020, os pedidos de mudança de endereço eram submetidos à Central de Monitoramento Eletrônica da Seap. No ano seguinte, isso mudou: os pedidos devem ser levados à Justiça.

Para alcançar a justiça, os monitorados - não só as mulheres - precisam de assistência jurídica, o que requer dinheiro. A Defensoria presta atendimento gratuito. Mas nem o órgão, nem o TJ-BA possuem estatísticas de quantos são os pedidos de mudança de endereço, nem estimam a demora para ocorrer o julgamento. 

A dificuldade em estimar tempo e volume de solicitações acontece porque os pedidos são peticionados junto aos processos. A demora é vivenciada, e sofrida, por mulheres como Lurdes: elas sabem que, se não conseguem mudar de endereço, a coerção para que voltem ao crime também pode acontecer. Até porque a oferta de emprego não está em alta (muito pelo contrário), e esse contexto é ainda pior para egressos do sistema prisional,  que enfrentam o preconceito de empregadores. 

Lurdes está desempregada depois de passar seis meses trabalhando num hospital. Ela deixou a vaga pois não conseguia chegar às 19h, horário limite que pode estar fora de casa. Agora, trabalha como faxineira.

Perseguição a monitoradas é outra "prisão" 
Luz Marina, do Escritório Social da Bahia, lembra uma história que ilustra a constante fuga das monitoradas. “Outro dia, uma saiu para comprar um acarajé. Quando voltou, o chefe da boca disse: 'por que você saiu e a Rondesp [Rondas Especiais da PM] passou aqui? Não saia mais de casa'”. 

A tornozeleira eletrônica é permitida pela legislação para monitorar presos em saídas temporárias, em prisão domiciliar e como medida protetiva, para impedir que agressores se aproximem das vítimas de violência doméstica. A monitoração eletrônica existe no Brasil desde 2010, como alternativa para aliviar, em parte, as penitenciárias. Na Bahia, passou a ser aplicada em 2017.

Entre mulheres, a organização pelos Direitos Humanos Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITCC) estima que mais da metade das presas tenha se envolvido ao tráfico de drogas, em atividades como o transporte de entorpecentes. A maioria delas (68%), segundo o último levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, é negra, e metade tem entre 18 e 29 anos.

 

Mulheres enfrentam perseguições pós-cárcere (Foto: Paula Fróes/CORREIO)

Para mulheres monitoradas eletronicamente, a prisão continua fora dela. Desde os dias de cárcere, as mulheres sabem que, com tornozeleiras, não serão bem-vindas onde moravam. É como se a tornozeleira chegasse antes delas.

São pessoas que têm sua rotina em comunidade "sequestrada" pelos constrangimentos a que ficam suscetíveis com o dispositivo rastreável, como afirma Carla Akotirene, doutora em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (Ufba).  

"A prisão permanece por meio do estigma e da perseguição policial aos territórios. Não posso deixar de dizer que encontrei mulheres egressas trabalhando com o sexo, ambulantes e trabalhadoras domésticas".

A obrigatoriedade de conseguir, judicialmente, a permissão para mudar de endereço, dificulta o contexto de ameaças. A resposta judicial - que demora meses, como no caso de Lurdes - nem sempre tem a urgência dos dilemas reais. "A demanda reprimida pode custar a vida", relembra Luz Marina. 

Sem resposta aos pedidos, os riscos se tornam mais próximos. “Estou me sentindo observada. Eles [“chefes do bairro”] passam por aqui, ficam me olhando”, conta Carolina*, outra monitorada, que já pediu três vezes pela mudança do endereço. O mais recente tem três meses. Carolina quer deixar Salvador para viver na Ilha de Itaparica, trabalhando no restaurante de uma amiga. 

“Eles passam por aqui, olham. Já sai da vida errada. A facção tentou me ajudar, mas sei que quem ajuda, fica devendo. Não quero dever”.

Uma outra amiga dela, também com tornozeleira, foi expulsa do bairro de Periperi por criminosos. Em um ano e dez meses de liberdade condicional, a corrida de Carolina é contra o tempo e pela liberdade. Ela já cometeu 43 violações ao sistema de monitoração, justificadas judicialmente. 

“Por exemplo, passei do horário porque estava fazendo um curso. Tive que correr para provar isso, porque eles [a justiça] sabem dessas violações”, diz Carolina, que pode ficar fora de casa das 6h às 19h. Às 17h, ela começa a ficar nervosa. O horário limite está próximo. Se a tornozeleira apitar, será uma infração a mais para a conta. 

Como funciona o monitoramento eletrônico?
Na sede da Central de Monitoramento Eletrônica, em Salvador, os policiais penais monitoram pessoas com tornozeleira eletrônica como Carolina. É lá que o apito na tornozeleira dela é rastreado. Há um telão em que podem ser avistados pontinhos verdes e vermelhos.

Cada monitorado precisa cumprir regras determinadas por um juiz para uso de tornozeleira - como áreas de inclusão (endereço), pintadas de verdes, e as áreas de exclusão (onde não deve estar), em vermelho, além da hora e dia permitidos para sair e estar em casa. 

Se acontece qualquer violação, eles acompanham da sala. O monitoramento acontece 24 horas por dia. Cada plantão tem entre três e quatro policiais. Atualmente, há monitorados em oito cidades baianas. 

“A tornozeleira funciona de forma parecida com o celular. Há um pacote de dados. Ela vai te dar informações sobre o nível da bateria, se está carregada, se houve infrações”, explica José Fabiano de Carvalho, diretor da central de monitoração. 

É possível fazer esse acompanhamento porque a tornozeleira é configurada para que as determinações judiciais sejam seguidas. Se há violação, a pessoa infratora é contatada para justificar. A quantidade de infrações pode ser determinante para regressões à pena, como a volta ao regime fechado. A gravidade das violações é considerada em cada caso. 

 

Roupas compridas fazem parte da rotina das monitoradas (Foto: Paula Fróes/CORREIO)

Os relatos de risco chegam até a central, que não tem poder para dizer sim ou não à mudança de endereço. “Se ela saiu por risco, ela pode provar que aquela violação não ocorreu por vontade própria. As violações ficam registradas no sistema, mas o juiz vai chamar a pessoas para uma justificativa”. 

Para Rosaura*, nunca houve tempo de justificar. Depois de ameaças, ela se mudou três vezes de endereço. Fugir para sobreviver era mais urgente. Duas vezes foi expulsa por traficantes, que não queriam uma monitorada na área deles. Em outra, antes de ser mudar para o endereço atual, em Mata Escura, o marido dela foi tomado como um infiltrado de outra facção criminosa.

Agredido, ele passou quatro meses internado e foi submetido a cirurgias plásticas, tamanha a desfiguração do corpo.

“Fui mudando de endereço por conta da tornozeleira. Todo lugar que eu chegava, tinha que ir falar com os donos do bairro. Eles aceitavam, depois cismavam, diziam que tinha contato com polícia”, conta.

Os primeiros dias nos novos endereços eram “tranquilos”, conta ela, se a autorização dos "donos do bairro" fosse concedida. Depois de abordagens policiais que resultavam em prisões, a calmaria ia embora. E, com ela, partiam Rosaura, os dois filhos e o marido, sem destino.

Em agosto do ano passado, tiraram a tornozeleira de Rosaura. Desde maio de 2020, ela poderia estar com os tornozelos livres, mas não teve acesso a um defensor público. Com R$ 500, arrecadados pela família que vive no interior, ela pagou um advogado. Hoje num novo endereço, sem a tornozeleira, Rosaura mantém a família vendendo guloseimas em ônibus, enquanto o marido se recupera. É a primeira vez que, mesmo não inteiramente, ela se sente livre. 

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