Por que os baianos dizem ‘de hoje a oito’, se a semana tem sete dias?

Professor da UFBA cita aspectos históricos e matemáticos para esclarecer ‘conta’ controversa


“Amores, uma ajuda matemática! A assessora Fulana, da Corporação X, me diz que uma turma do Projeto Y foi iniciada em 2 de fevereiro de 2009. Pelas minhas contas, amanhã, a turma completa 13 anos. Ela insiste que são 12. Desaprendi a contar?”, questiona aflito o meu colega de Alô Alô Bahia, José Mion, no grupo do zap da (outra) firma. Alguém chega para acalmar e ajudar: “12 anos. Certinho”. Ops! Será?

Com o grupo de jornalistas (povo ruim de conta nesse nível) dividido entre dozeminions e trezistas, foi necessário recorrer ao VAR, ou seja, a uma lista marcando cada aniversário do tal projeto. Deu 13, menos mal, mas esse tipo de conta que dá nó no juízo, como os 17 e 700 da canção de Gonzagão, não chega a ser uma questão entre os baianos, que dizem “de hoje a oito” sem se coçar.

Quer dizer, não chegava! Isso porque outro jornalista, igualmente ruim de conta, um mês antes dessa cizânia numérica, chamou a atenção para a problemática. Num vídeo em seu Instagram, James Martins, o tal jornalista e meu amigo, falava sobre como, para ele, soa inexato o “de hoje a oito”, também dito em outras partes do Nordeste, mas mais disseminado por aqui - no próprio Santo Antônio de James tem até bloquinho de Carnaval com esse nome.

Na gravação, ele lembra que a confusão parece tão evidente que a expressão para se referir a duas semanas adiante é “de hoje a quinze”. Mas por que a conta não fecha, poeta?

“Eu acho que é porque o baiano valoriza tanto o tempo presente, que não perde na conta o agora”, teoriza no mesmo vídeo.

Nos ajude, professor!
Nos comentários do post de James aparece, tentando colocar os pingos no pi, o professor da Escola Politécnica da UFBA, Márcio Nascimento, formado em Física na USP, mestre, doutor e com diversos trabalhos em tópicos específicos de ensino de Ciências e Matemática.

Eu já tava planejando falar sobre o assunto (por causa mesmo do vídeo de James), mas por coincidência e/ou sorte, o professor se adiantou e, num e-mail a mim, trouxe esclarecimentos sobre o tópico. De cara, Nascimento lembra que o “de hoje a oito” guarda alguma tradição lusitana. 

“Todos sabem que a semana tem sete dias. Começa no domingo (Dies Domini ou Dia do Senhor), depois segunda (que se fosse o primeiro dia da semana receberia outro nome), terça, quarta, quinta, sexta e, por fim, sábado. Mas nem sempre foi assim. Apenas no Brasil e em Portugal os dias contém o termo feira, que está relacionado a feria, palavra que em latim significa descanso. Soa contraditório a princípio dias da semana serem denominados como de folga, mas isto apenas segue uma curiosa tradição dos patrícios”, antecipa.

Na verdade, a fala é uma espécie de preparação para a explicação (ou tese), que precisa de bastante contextualização histórica. “Tal termo [feria] passou a ser empregado no ano 563, após um concílio da Igreja Católica na cidade portuguesa de Braga – daí a explicação para a presença do termo feira somente em línguas lusas. Na ocasião, o bispo da cidade, Martinho de Dume, decidiu que os nomes dos dias antecedentes à Semana Santa (antes da Páscoa) deveriam mudar. Até então, como em outros lugares, tais dias eram regidos respectivamente por deuses pagãos, o que foi considerado uma heresia pela Igreja”, continua o professor.

Tradição
Uma pausa aqui para confessar que eu não sabia que, em inglês, por exemplo, alguns nomes de dias da semana têm ligação com deuses pagãos (nórdicos, no caso). Quarta-feira, ou seja, wednesday, vem de uma variação do inglês antigo para o nome de Odin, o “pai de todos” e líder dos deuses nórdicos que vivia em Asgard. E quinta-feira, que é thursday, vem do Thor's Day, dia de Thor, deus do trovão e filho de Odin. (Alô, Marvel!) Sabia disso? Nem eu.

Antes de devolver a palavra ao professor Márcio, interessante notar que em religiões afro-brasileiras, especialmente na Umbanda, também há uma tradição de atribuir dias da semana a divindades (nesse caso, orixás): o Oxalá day seria a sexta, e o sábado de Oxum, Iansã e Iemanjá.

Retomando: o professor lembra que, até meados do primeiro milênio da era comum, os astros visíveis no céu davam nomes aos dias da semana em regiões da Espanha, Itália, França e Portugal: Sol, Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus e Saturno, todos estes vinculados a divindades greco-romanas, e que, como dito, em outras culturas, os dias da semana são nomeados conforme as divindades correspondentes de cada região.

Sete dias
O professor Márcio Nascimento comenta que a prática da feria passou a ser empregada aos demais dias apenas em Portugal, com exceção do dia de descanso, Sabbatum (ou Shabbat para os judeus) e a Prima Feria, ou Dominicus.

“Antes disto, a tradição da semana de sete dias foi estabelecida em 321, quando os calendários ocidentais começaram a contar o primeiro dia da semana pelo domingo. Tal regra foi imposta pelo imperador romano Constantino I (c.?272 – 337). Antes, a prática de contagem da semana envolvia oito dias (ciclo nundinal) distribuídos em dez meses (de Março a Dezembro)”. Sabia disso? Aí, ó…

Mas, segundo ele, o problema envolvendo o termo “de hoje a oito” engloba o dito “princípio aditivo”. “Há pelo menos uma prática particular e igualmente similar de contar de oito em oito tendo sete elementos. E está relacionada à música. Os antigos matemáticos da seita pitagórica no século V antes de Cristo estabeleceram a escala musical de cinco notas: Dó, Ré, Mi, Sol e Lá. Tempos depois, foi definida outra, mais conhecida, envolvendo as sete notas musicais: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si”, reconstitui.

O professor lembra que para denotar uma nota numa escala superior ou inferior, músicos comumente usam e abusam do termo oitava, no mesmo sentido de se contar o intervalo de dias da semana na Bahia, mas também em estados vizinhos. 

“Pelo fato do Nordeste ser uma região com tradições orais e musicais extremamente ricas, este jeito lusitano de falar se perpetuou de modo tão franco e agradável, persistindo até hoje nos dois continentes, com maior graça na Terra de Todos os Santos”, conclui o professor da Politécnica.

O que se torna digno de nota, ainda de acordo com ele, é que não se costuma muito denotar de sexta a escala que se refere às cinco notas musicais pentatônicas, “ou ainda de décima terceira o intervalo entre as doze notas musicais escolhidas na escala temperada imortalizada pelo genial músico e compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685 - 1750)”.

E fechando a conta, para o professor, não há problema em dizer “de hoje a oito” pois “não há erro aritmético”. “Basta apenas contar nos dedos. Senão, observe: a semana tem sete dias, contando todos os dedos de uma mão e dois da outra. Se alguém quiser contar quantos dedos tem entre um dia da semana e o mesmo dia da semana seguinte, quantos existem?” Faça o teste aí e me diga… Viu? Se não viu, de hoje a oito a gente faz essa conta de novo.

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