Kremlin tenta afastar tropas da Otan de suas fronteiras e
acusa vizinhos de ligação com neonazistas
Após meses de tensões com potências ocidentais, a Rússia
atacou a Ucrânia na quinta-feira (24), dando inicio à crise militar mais grave
na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Entenda o que provocou o conflito e qual a situação até
agora.
QUAL CAMINHO RÚSSIA E UCRÂNIA PERCORRERAM ATÉ O ATAQUE DESTA
QUINTA-FEIRA (24)?
No começo de novembro, Putin deslocou mais de 100 mil
soldados e equipamentos para áreas próximas, relativamente, da Ucrânia. Por
meses, a Ucrânia, os EUA e a Otan acusaram o presidente russo de planejar uma
invasão militar, o que ele negava. O russo dizia, no entanto, que poderia tomar
ações militares se a aliança militar ocidental não recuasse e se não vetasse
formalmente a Ucrânia de entrar para o clube, o que os EUA consideravam
inaceitável.
Após meses de tensão, na segunda-feira Putin decidiu
reconhecer a independência de duas áreas separatistas no território ucraniano,
Lugansk e Donetsk, de maioria étnica russa —o Kremlin diz que há 800 mil
pessoas com cidadania russa na região.
O reconhecimento da independência das províncias ucranianas,
além de um discurso duro contra o governo em Kiev, foi tido como o passo final
para que as nações entrassem em guerra.
Em reação, União Europeia e Estados Unidos anunciaram uma
série de sanções a autoridades e empresas russas. A princípio, Putin disse que
estava disposto a negociar uma
solução diplomática desde que respeitados os "interesses e a
segurança" de seu país.
Apesar do discurso, o Kremlin não deu tempo para uma solução
negociada. Por volta das 5h da manhã desta quinta, no horário local, o russo
foi à TV dizer que faria uma "operação militar especial" no Donbass,
a área de maioria russa étnica.
A fala foi lida como uma declaração de guerra, sobretudo
porque Putin afirmou que quer trazer à Justiça quem cometeu o que chamou de
"genocídio" e "crimes" contra russos nas áreas, além de
"desmilitarizar e desnazificar" a Ucrânia.
Minutos depois, tropas russas avançaram sobre o território
ucraniano e, desde então, o país vizinho está sob ataque por diferentes
frentes.
O QUE PUTIN QUER DIZER COM "DESNAZIFICAR" O PAÍS?
A Rússia tem acusado Kiev de ligações com grupos neonazistas
—há elementos das Forças Armadas, como o batalhão Batalhão de Azov, acusados de
usar símbolos como a suástica e saudações nazistas. Os alemães lutaram contra
os soviéticos pelo controle da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial.
O presidente Volodomir Zelenski, contudo, é judeu e costuma
se lembrar disso ao comentar as acusações russas. O porta-voz do Kremlin,
Dmitri Peskov, afirmou que sugeriu a derrubada do governo para cumprir o
objetivo de "desnazificar" o país: "Idealmente, você liberta a
Ucrânia e se livra dos nazistas. O futuro pertence ao povo ucraniano",
disse.
COMO ERAM AS RELAÇÕES ENTRE KIEV E MOSCOU ATÉ AQUI?
Antes tida como uma espécie de satélite russo, a Ucrânia está
em atrito com a Rússia desde 2014, quando um governo pró-Moscou em Kiev foi
derrubado após protestos em massa. Putin percebeu que a Otan e a União Europeia
poderiam absorver o vizinho e agiu, promovendo a anexação da Crimeia, um
território étnico russo que havia sido cedido à Ucrânia nos tempos soviéticos,
em 1954.
Além disso, fomentou uma guerra civil de separatistas
pró-Kremlin na região do Donbass, que está no centro da confusão agora.
COMO ESTÁ A SITUAÇÃO DA CRIMEIA HOJE?
Apenas oito países aliados do Kremlin reconhecem a península
como território russo. Todo o resto da comunidade internacional, incluindo a
posição oficial da ONU, é de que a região é território ucraniano. Apesar disso,
a anexação é vista como um fato consumado na comunidade diplomática.
O QUE PUTIN QUER DE FATO?
A prioridade do presidente russo é evitar que a Ucrânia, ou
qualquer outro país ex-soviético, entre na Otan e, de forma secundária, na
União Europeia. Historicamente, os russos têm o seu flanco mais vulnerável no
Leste Europeu. Por isso, tanto o Império Russo quanto a União Soviética ou
dominavam ou tinham aliados na região.
O ocaso soviético fez com que parte desses países fosse
absorvida na esfera ocidental e, em 2004, a expansão da Otan chegou a três
repúblicas que eram da URSS: Estônia, Letônia e Lituânia. Isso foi a gota
d’água para Putin.
É A PRIMEIRA VEZ QUE PUTIN REAGE?
Não. O conflito atual se assemelha à guerra em 2008 na
Geórgia, um país pequeno do Cáucaso, uma das rotas históricas de invasões e
guerras. Assim como a Ucrânia, a Geórgia tinha duas áreas de maioria étnica
russa, a Abkházia e a Ossétia do Sul. Um misto de pressão russa e o voluntarismo
do então presidente Mikheil Saakashvili jogaram seu país em rota de colisão com
Moscou. Ele tinha uma atitude agressiva e foi visto como imprudente ao provocar
os russos, dando a desculpa para que eles atacassem em nome da minoria étnica
que povoa as duas áreas do país. O resultado foi a intervenção dos russos, que
haviam mobilizado dezenas de milhares de soldados para um exercício militar nas
vizinhanças. Hoje a Geórgia não controla 20% de seu território, o que na
prática impede que ela se una à Otan.
POR QUE A UCRÂNIA NÃO ENTROU NA OTAN E NA UE?
Pelo mesmo motivo da Geórgia: as regras dos clubes não
permitem países com conflitos territoriais ativos. Isso torna conveniente o
discurso ocidental, já que ninguém quer pagar para ver em um confronto direto
com a Rússia. Assim, Kiev recebe apoio e algum armamento da Otan, mas não se
esperam tropas em solo para sua defesa.
QUAIS AS REAÇÕES ATÉ AQUI?
Até agora, países ocidentais não enviaram tropas militares para
apoiar o exército ucraniano.
Na quarta-feira (23), a União Europeia anunciou um pacote
inicial de sanções contra os 351 membros da Duma (Câmara baixa do Parlamento
russo) que chancelaram o reconhecimento das áreas separatistas ucranianas. Eles
estão proibidos de viajar aos países do bloco e tiveram bens na UE congelados.
O pacote de retaliações atinge ainda 27 entidades e
indivíduos que, segundo comunicado da UE, participaram "da ameaça à
integridade territorial, soberania e independência da Ucrânia". Neste
grupo estão membros do governo; bancos e executivos que forneceram apoio
financeiro e material às operações nas regiões separatistas; e autoridades
militares e indivíduos "responsáveis por liderar a guerra de desinformação
contra a Ucrânia".
Um dia antes, os Estados Unidos impediram o governo da Rússia
de fazer transações financeiras envolvendo títulos de sua dívida com empresas
dos EUA e da Europa. Houve também sanções contra cinco integrantes da elite
russa e seus familiares, por terem relação com acusações de corrupção e terem
se beneficiado de relações com o Kremlin, segundo a gestão Biden.
Além das sanções decididas em bloco, a Alemanha reagiu
individualmente, ao congelar a certificação do gasoduto Nord Stream 2, que liga
a Rússia ao país europeu e está pronto, mas sem poder operar devido à crise na
Ucrânia. O presidente americano Joe Biden também anunciou sanções à Nord Stream
2 AG, empresa responsável pelo gasoduto, e seus dirigentes.
O Nord Stream 2 é o segundo ramal de um megaprojeto iniciado
nos anos 2000. Duplica a capacidade de transporte de gás natural pelo mar
Báltico, possibilitando à Rússia desviar o fornecimento que hoje é
majoritariamente feito por meio justamente da Ucrânia e da turbulenta ditadura
aliada Belarus.
AS SANÇÕES TÊM EFEITO CONCRETO?
Sanções do bloco europeu contra Moscou começaram a ser impostas
em 2014, como resposta à anexação da Crimeia. Gradualmente, a lista de medidas
foi crescendo, com renovações semestrais, e passou a incluir vetos diplomáticos
(como a expulsão do G8) e retaliações individuais ou direcionadas a empresas e
setores econômicos inteiros.
Por um lado, analistas concordam que o pacote de 2014 não
atingiu seus principais objetivos, como o cumprimento dos Acordos de Minsk,
assinados entre 2014 e 2015, um cessar-fogo que nunca chegou a ser respeitado
pelas partes —estima-se que 14 mil pessoas tenham morrido na guerra civil.
Por outro, reafirmam que o instrumento continua sendo o que
tem mais potencial de eficácia, do ponto de vista do Ocidente, para evitar um
conflito militar —especialmente se, como nesta semana, for implementado com
velocidade, por um grupo relevante e com consequências cada vez mais severas.
QUAIS OS IMPACTOS ECONÔMICOS DA GUERRA?
O preço do petróleo superou os US$ 100 pela primeira vez em
mais de sete anos. A Rússia é um dos grandes produtores de petróleo, e um
conflito militar afeta o mercado do produto. Além disso, sanções impostas pelos
EUA e pela União Europeia também podem pressionar o preço da energia, direta e
indiretamente. Se a guerra provocar a interrupção do comércio euro-russo de
combustíveis, os europeus terão que procurar energia em outra parte, em um
mercado mundial que ficará ainda mais apertado e caro.
Também pode haver impacto no preço dos alimentos. A Ucrânia
vende 17% do milho do mercado mundial, um peso relevante, embora fique atrás de
EUA, Brasil e Argentina. Ucrânia e Rússia exportam 30% do trigo comprado pelo
resto do planeta.
Sempre que há uma crise política grave, papéis de maior
risco, como ações, são afetados. Após o anúncio da invasão, ações globais e
mesmo títulos do Tesouro americano despencaram, enquanto as cotações do dólar,
ouro e petróleo dispararam após tropas russas deslancharem um ataque contra a
Ucrânia.
A busca por segurança global por parte dos investidores
impulsionou o dólar, que subia mais de 0,5% em relação a cesta de moedas de
seus principais parceiros comerciais. O euro, por sua vez, caía 0,8%.