Após despejo, Yolanda passou a trabalhar sem salário, folga ou contato com familiares
Agressões contra a idosa foram percebidas por vizinha de casa em que ela trabalhava |
"Ela não limpou o leite da minha geladeira".
"Manda vir limpar aqui. Demônia". Foi sob esses e outros dizeres que
a história de Yolanda, que passou 50 de seus 89 anos submetida a uma situação
de escravidão em Santos (SP), cruzou-se com Zilmara de Souza Dantas, vizinha do
local onde a idosa vivia. Sem cruzar os olhos com ninguém.
"Dava bom dia para ela, boa noite, mas ela não me
respondia. Olhava sempre para baixo. Parecia coagida a não se comunicar",
relatou Zilmara ao Fantástico, da TV Globo, acrescentando que a
situação a deixou desconfiada.
"Eu queria mesmo entender qual
era o contexto dela naquele apartamento, dentro daquela família".
A partir daí, Zilmara decidiu gravar o que costumava ouvir e
fazer uma denúncia. Assim, a história, descoberta em 2020, chegou
ao Ministério Público do Trabalho (MPT), que pediu à Justiça reconhecimento
de que Yolanda foi submetida à situação de trabalho análogo à
escravidão.
CHEGADA AO EMPREGO
Conforme a Polícia, Yolanda, o marido e as duas filhas
foram despejados do local em que moravam na década de 1970.
Daí, a mulher passou a vagar pela cidade pedindo alimentos e auxílio nas casas.
Em uma delas, a residência de Nirce, então com 93 anos,
conseguiu o convite para trabalhar como empregada doméstica — e lá ficou por
cinco décadas. Sem salário, folgas ou contato algum com
ninguém da família.
PRECARIEDADE
Ao longo do tempo que passou no emprego, Yolanda foi mantida
não apenas sem os benefícios trabalhistas, mas, também, sob abusos
físicos e verbais. "Uma filha dessa minha vizinha visitava essa mãe e
eu comecei a identificar muitos gritos e xingamentos", afirmou Zilmara à
reportagem.
Além disso, Yolanda, em idade avançada, mostrava-se em
situação indigna com frequência. Segundo a vizinha, a vítima aparentava estar
com roupa "muito gasta, muito puída" e tinha um machucado na perna
"que não sarava nunca".
A defesa de Yolanda entrou com uma ação trabalhista. Até que
a decisão saia, a Justiça determinou pagamento de uma pensão para ela, por
tutela antecipada. O MPT pediu ainda que a família pague R$ 1
milhão por danos morais coletivos.
AGRESSÕES
A Polícia informou ao Fantástico que Rosana Fernandes Simão —
com 67 anos na época — confirmou as agressões em depoimento. As irmãs dela
também confirmaram as ocorrências, chegando, inclusive, a classificar Rosana
como uma "bomba-relógio" devido à personalidade explosiva.
No curso das investigações, Nirce, a patroa, morreu, além de
duas de suas três filhas. Entre elas, Rosana.
A família empregadora comunicou ao programa televisivo que o
processo está sob sigilo e desejou não gravar entrevista.
Apesar de falar pouco após décadas reclusa, Yolanda confirmou
o que passou ao dominical. Limpava, fazia faxina... serviço familiar; lavar,
passar, cozinhar. Ela não me pagava ordenado. A filha dela, Rosana, queria me
bater toda hora, berrava muito comigo".
REENCONTRO COM FAMÍLIA
A ligação da Polícia foi recebida com surpresa por Viviane,
neta de Yolanda.
"Falou o nome da minha avó, perguntou se eu conhecia.
Falei: "Conheço. Essa é a minha avó'", contou ao Fantástico,
acrescentando ter dito às autoridades que a familia pensava que a avó tinha
morrido após mais de 50 anos sem notícia dela.
Idosa nunca chegou a comemorar aniversário no antigo emprego |
Emocionada, Viviane lembrou da mãe, já morta, que acreditava
na sobrevivência de Yolanda. "Porque até o último dia da vida dela, ela
acreditava que a mãe dela estava viva. Só que ela não teve a oportunidade de
poder reencontrá-la", lamentou.