Pai da vítima apresentou as provas; tenente, soldado e cabo
podem ir à júri popular
Até onde um pai é capaz de ir em busca da verdade sobre a
morte do filho? Inconformado com a versão de que o seu caçula, Eduardo dos
Anjos Menezes, 27 anos, havia reagido a abordagem policial, o lavrador Anésio
Bispo de Menezes, 52, passou um ano e meio correndo atrás de documentos que
provassem a execução do rapaz, que era deficiente físico e não tinha
antecedentes criminais. Ele apresentou dossiê à Justiça, que converteu o auto
de resistência instaurado em janeiro do ano passado em denúncia contra um
tenente, um soldado e um cabo da Polícia Militar. Em julho, os três policiais
viraram réus e podem ir à júri popular em Barreiras. Eduardo dos Anjos foi morto aos 27 anos na frente da filha de apenas 6 (Acervo Pessoal)
Os PMs foram denunciados por homicídio qualificado, quando
não há chance de defesa da vítima. São eles: o tenente Wudson Sulivan Araújo
dos Santos, o soldado Edicarlos Araújo dos Santos e o cabo Marcos Ney Alves,
todos da Rondesp (Rondas Especiais) de Barreiras. Eduardo, que possuía
deficiência na perna esquerda, condição que lhe impedia desde criança de
locomover-se com agilidade, foi baleado na presença da família, dentro da
própria casa. A filha de 6 anos da vítima presenciou a cena. Os três agentes
também são investigados em um Inquérito Policial Militar (IPM).
A denúncia foi oferecida ao Tribunal de Justiça da Bahia
(TJ-BA), no dia 8 de julho, pela promotora Stella Athanazio de Oliveira Santos.
Dois dias depois, o pedido foi acatado pelo Juiz de Direito Substituto, Gustavo
Americano Freire, de Barreiras, e os policiais viraram réus na Vara do Tribunal
do Júri e podem ir à júri popular se a tese for entendida como crime doloso, ou
seja, eles teriam a intenção de matar Eduardo. A decisão da Justiça encorajou
outras testemunhas, que trouxeram para seu Anésio fatos novos e estarrecedores
sobre o caso, que já foram protocolados no MP-BA e na unidade da Corregedoria
da PM da cidade.
Apesar de apenas três PMs terem sido denunciados, ao menos
outros cinco estariam envolvidos no episódio, pois duas viaturas da Rondesp
foram vistas no dia do crime em frente à casa da vítima. Outro fato investigado
é o motivo da morte de Eduardo, uma trama criminosa. Ainda segundo os relatos
de seu Anésio protocolados nos órgãos que controlam a atividade policial, o
ex-patrão de seu filho, dono de açougue, disse que a vítima tinha jogado fora
certa quantidade de drogas pertencentes a policiais, que estavam escondidas no
local.
“Quero que todos sejam afastados do trabalho e condenados.
Será um alento para a minha dor, porque imagino o sofrimento que meu filho
passou nas mãos desses policiais. E para outras famílias de vítimas, para frear
tanta maldade das forças policiais contra pessoas pobres”, diz seu Anésio, que
teme pela própria vida e dos familiares. “Mas confio em Deus e durante
estes longos meses venho sendo apoiado por amigos, pessoas conhecidas,
servidores públicos, alguns policiais civis e militares, além de muitos advogados.
Só quero que se faça a justiça”, acrescenta.
Entre os acusados, apenas o tenente já tinha conduta
investigada pelo MP. Ele e um outro policial são acusados de agressão a um
casal na cidade de Santa Maria da Vitória.
Crime chocante
Seu Anésio afirma que seu filho não tinha armas ou usava drogas. No dia 06 de
janeiro de 2021, Eduardo estava em casa, com a família, na Rua do Arame, Vila
Brasil. Por volta das 18h, assistia TV sentado no sofá com a filha pequena,
quando quatro policiais militares – os três denunciados pela Justiça e outro
soldado – invadiram o imóvel e perguntaram: “Quem é Eduardo?”. Após a vítima se
identificar, o tenente perguntou: “Cadê a droga?”.
“Meu filho respondeu que não tinha nada, que não sabia de
droga”, continua Seu Anésio. Mas de nada adiantou. De acordo com o pai, o
tenente deu um tapa no rosto de Eduardo, que caiu no chão e foi abraçado pela
filhinha. A criança tentava levantá-lo, mas foi puxada pelos cabelos por um dos
PMs. Nesse momento, Eduardo conseguiu se levantar, mas recebeu três tiros no
tórax, disparados a uma distância de aproximadamente um metro e meio, todos
pelo tenente Wudson Sulivan. Depois dos tiros, os irmãos de Eduardo, que
estavam em outra área da casa, e outros parentes, desesperados, pediram para o
rapaz não ser morto. Outros policiais obrigaram todos os familiares a entrarem
em um quarto sob a ameaça de serem igualmente baleados. Depois, os policiais
jogaram Eduardo no fundo de uma viatura e saíram em alta velocidade.
Em seguida, a família de Eduardo foi para o Hospital do Oeste
(HO), acreditando que os policiais tinham levado o rapaz para lá. No entanto,
foram informados pelos profissionais do atendimento que até àquele momento não
havia sido apresentada qualquer vítima de disparo de arma de fogo por PMs no
local.
Seu Anésio afirma que os policiais militares só chegaram ao
HO com o filho dele bastante ensanguentado, às 19h07, mais de 1h30 após o
ocorrido. Segundo ele, o percurso de sua casa até o hospital varia entre 10 e
15 minutos. Os militares também não permitiram aproximação dos familiares para
ver o estado da vítima. A família, bastante aflita, soube naquela mesma
madrugada que Eduardo não resistiu aos ferimentos.
Auto de Resistência
Os policiais envolvidos na morte de Eduardo registraram na 1ª Delegacia de
Homicídios de Barreiras um auto de resistência, versão que foi derrubada
posteriormente pelo MP. Eles relataram que, por volta das 18h, durante incursão
das guarnições VTR 4402 e 4404 na Rua do Arame, foi percebida a presença
de dois homens suspeitos. Os PMs afirmam que tentaram uma abordagem, mas os
homens correram e entraram em uma casa. Então, quatro PMs (o tenente Wudson
Sulivan, o soldado Edicarlos, o cabo Marcos Ney e outro soldado, cuja
participação no fato ainda não foi apurada e por isso o nome não foi divulgado)
entraram no imóvel.
Os PMs acrescentaram ao relato que na ‘iminente ameaça, pois
Eduardo empunhava arma, e para salvaguardar a integralidade dos policiais, o
tenente Wudson Sulivan efetuou três disparos contínuos e frontais’. No auto de
resistência consta ainda que os policiais apreenderam com o “resistente” um
revólver calibre 38 com seis munições intactas e quantidade não especificada de
drogas. Os policiais relataram que, em seguida, tentaram contato com o Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência (Samu), para socorrer a vítima, mas receberam
resposta negativa, pois os paramédicos naquele momento atendiam um acidente na
BR-242.
Ainda conforme o auto de resistência, os policiais decidiram
prestar socorro na viatura 4404 para o hospital da cidade, onde Eduardo chegou
às 19h07. Os PMs relataram o auto de resistência na delegacia às 22h28, depois
de quase quatro horas e meia do fato.
Contestação
Inconformado com a morte do filho e revoltado com a versão dos policiais, Seu
Anésio iniciou a luta por justiça durante 18 meses, correndo na Delegacia de
Homicídios e levando informações, indicando testemunhas, implorando
diligências. A perícia foi realizada no local do crime cinco dias depois e
diante da insistência do lavrador devido às marcas de tiro nas paredes de sua
casa e dos projéteis encontrados na sala. O pai também entregou documentos para
a Polícia Civil que comprovam a deficiência do filho, inclusive, relatório
médico de 2016 atestando que Eduardo fez raio-X da bacia para tratar
deformidades por sequelas da Síndrome de Legg-Calvé-Perthes, também chamada de
doença de Perthes, enfermidade degenerativa da articulação do quadril em que
ocorre destruição da cabeça do fêmur por necrose [a morte do tecidos], por
falta de vascularização.
Outra prova que o pai de Eduardo conseguiu foi ofício da
Secretaria Municipal de Saúde de Barreiras à Polícia Civil, relatando que os
policiais não ligaram para o Samu. “Não consta em nossos registros nenhuma
solicitação de atendimento e nem abertura de ocorrência no sistema para o
senhor Eduardo Anjos de Menezes, na data 06/01/2021, vítima de arma de fogo no
endereço Rua do Arame, bairro Vila Brasil, nesta cidade”, diz trecho do
documento da coordenação do Samu em Barreiras.
Um laudo do Departamento de Polícia Técnica (DPT) apontou
que, além dos três tiros que a vítima levou no tórax dentro de casa, o exame
pericial do corpo de Eduardo identificou outras duas perfurações por arma de
fogo, quando a vítima estava de costas: uma atingiu a lombar e outra um dos
punhos. Segundo o pai, as duas últimas lesões teriam sido realizadas antes de
Eduardo chegar ao hospital. O laudo do DPT apontou que o corpo apresentava mais
dois ferimentos incisivos de material cortante nos braços, que, de acordo com o
pai, podem ter sido provocados durante tortura.
“O que eu mais sinto é ele não ver a filha crescer, ter sido
morto de forma tão cruel. Atiraram nele na frente da filha e depois passaram
mais de uma hora com ele dentro de uma viatura fazendo maldades, cortes e ainda
tiros pelas costas. Ele passou por esse horror todo e eu não estava lá para
protegê-los desses policiais”, desabafa Seu Anésio.
O lavrador confronta também o relato dos policiais de que o
filho estava com um revólver. “Essa arma apareceu na porta da rua, um policial
levantando, impondo, dizendo que encontrou com ele (Eduardo). Meu filho não
estava com droga e todas as testemunhas disseram que houve execução premeditada
pelos PMs, que já chegaram perguntando pelo meu filho e pela droga”, diz o pai,
que questiona o motivo dos outros policiais não terem sido incluídos na
denúncia. “Todos viram que havia quatro policiais dentro de casa e outros
quatro do lado de fora. Se todos participaram, que sejam todos punidos”.
O inquérito policial número DH-04/2021, assinado pelo
delegado Thiago Aguiar Folgueira Machado, concluiu a investigação e encaminhou
o auto de resistência para o MP. Mas, segundo Seu Anésio, a PC teria ignorado
evidências da execução de Eduardo. “Na Delegacia de Homicídios, meu filho nunca
foi tratado como vítima. A polícia nunca quis investigar para saber o motivo”.
Laudo médico mostra que Eduardo tinha necrose da cabeça do fêmur e não podia se deslocar com agilidade, o que derruba a alegação dos acusados de que a vítima tentou fugir durante abordagem iniciada em via pública
(Foto: Acervo Pessoal) |
Denúncia à Justiça
Os executores de Eduardo não contavam com a persistência e coragem do lavrador,
que levou as provas reunidas por ele ao MP e ao comandando do 10º Batalhão de
Polícia Militar (BPM/Barreiras), apesar de nunca ter recebido qualquer reposta
sobre a conclusão da apuração militar.
Diante do dossiê, o MP acabou convertendo o auto de
resistência na denúncia contra três dos policiais. De acordo com o documento, o
tenente, o soldado e o cabo cometerem vários erros e um deles foi a invasão da
casa da vítima sem ordem judicial que “os autorizasse e sem que a conduta fosse
desdobramento de operação que se desenrolava em via pública”.
A denúncia derruba a versão dos acusados de que a morte de
Eduardo foi resultado de troca de tiros. No auto de resistência, os policiais
relataram que estavam em perseguição. “Dos elementos de prova colhidos nos
autos, observa-se inexistência de anterior diligência que teria se iniciado na
parte externa da casa ou via pública, sendo que toda ação policial se deu no
interior da residência”, diz trecho do documento.
A promotora Stella Athanazio diz em seu relatório que Eduardo
foi morto sem chance de defesa. “Não foi possível, assim, à vítima esboçar
qualquer reação, visto que toda a ação se passou dentro da residência, estando
impossibilitado de fugir. A versão ofertada pelos policiais militares de que
Eduardo lhes teria apontado a arma de fogo não foi confirmada pelas demais
pessoas presentes na casa, que afirmaram que ele estava em companhia da filha,
uma criança”, diz outro trecho do documento.
Por fim, Athanazio encerra a denúncia, dizendo que “a autoria
está demonstrada diante dos depoimentos e dos laudos periciais do local do
crime e dos projéteis apreendidos na residência”. O processo encaminhado
ao TJ-BA agora está na fase de instrução, quando todas as partes serão ouvidas
pelo juiz, que posteriormente decidirá se os PMs vão à júri.
O que dizem os órgãos
A reportagem procurou a Polícia Militar para saber o andamento da investigação
do IPM e se outros policiais serão investigados. Em nota, a corporação
disse que o “processo foi encaminhado à Central de Inquéritos do MP-BA, no
dia 27/10/2021”.
O MP afirmou, em nota, que “ofereceu denúncia contra os
três policiais militares por homicídio qualificado no dia 8 de julho. A
denúncia foi recebida e caberá ao magistrado decidir se os policiais serão
submetidos a júri”. Ainda segundo o órgão, “o pai da vítima apresentou petição
junto à 7ª Promotoria de Justiça de Barreiras, com fatos que não figuraram na
investigação da Polícia Civil. A petição foi registrada como Notícia de Fato e
está em análise pela Promotoria”. A nota do MP-BA encerra dizendo que “o
inquérito policial militar, quando concluído, será remetido à 7ª PJ e analisado
para providências pertinentes”.
A Polícia Civil respondeu que o inquérito foi
instaurado em 7 de janeiro de 2021, concluído e remetido à Justiça. “Houve
solicitação de diligências pelo Ministério Público, às quais foram atendidas”.
O órgão acrescenta que “foram realizadas oitivas de nove pessoas, além dos
envolvidos, e a solicitação de laudos periciais de necropsia, local de crime,
exames em armas, fichas de atendimento e relatórios médicos. O procedimento foi
instruído com imparcialidade e foram considerados todos os elementos colhidos
nas investigações, inclusive o laudo pericial de necropsia, o qual demonstra
ausência de sinal de tortura no corpo de Eduardo. Contrariamente ao
questionamento, não houve documento rejeitado pela autoridade policial que
presidiu as investigações”, finaliza.
Ao TJ-BA foi perguntado como está o andamento da fase de
instrução. O órgão não se posicionou até a publicação desta reportagem.
Testemunhas fizeram relatos ao pai da vítima
Após a Justiça acatar a denúncia contra os PMs acusados
de matar Eduardo do Anjos e a informação circular em Barreiras, Seu Anésio, o
pai da vítima, passou a ser procurado por pessoas desconhecidas que lhe traziam
relatos sobre qual seria o real motivo para a execução do seu
filho.
De acordo com o lavrador, após ter sido retirado de casa em
uma das duas viaturas, Eduardo foi levado para os fundos de um supermercado da
região, baleado novamente e submetido a tortura. O filho dele morreu porque foi
envolvido em uma trama da qual sequer tinha conhecimento prévio.
Eduardo trabalhava no atendimento de um açougue que fechou
logo no começo da pandemia. Ele foi demitido. A vítima não sabia que o ex-patrão
guardava drogas no açougue. Dias antes do rapaz ser morto, os PMs foram ao
açougue cobrar os entorpecentes do antigo dono. Segundo os relatos feitos
ao pai da vítima, o comerciante teria vendido a ‘mercadoria’ devido à falência
e, temendo pela própria vida, disse que o seu ex-funcionário havia jogado toda
a ‘mercadoria’ fora, em um rio. Os policiais ficaram enfurecidos e juraram
vingança. “Meu filho morreu sem saber o motivo. Eu quero justiça”.
Ainda de acordo com as informações colhidas por Seu Anésio
com testemunhas, dias antes de Eduardo ser morto, os policiais militares,
juntamente com o açougueiro e uma mulher supostamente envolvida com o tráfico,
foram até a casa da vítima, mas ele não estava no local, na hora. Na ocasião,
os PMs disseram à vizinhança que voltariam.
Autos de resistência estão sob suspeita
A denúncia do MP-BA contra os três policiais repercutiu em
Barreiras e alguns autos de resistência (ARs) suspeitos, que antes eram ocultados,
agora são comentados na cidade.
Um deles é o IP DH 31/2021, registrado na delegacia de
Barreiras no ano passado. Na ocasião, o tenente Wudson Sulivan disse que um
ex-detento que usava tornozeleira eletrônica desobedeceu à “voz de abordagem”
do lado externo de sua casa e, ao entrar no imóvel, foi perseguido pelos PMs e
baleado.
Na versão dos PMs, o homem sacou a arma primeiro e ao lado
dele havia drogas e munições. Moradores, porém, relataram que a situação foi
idêntica à morte de Eduardo.
Outra ação que é questionada foi registrada também na sede da
11ª Coorpin/Barreiras, na ocorrência de 00458450/2022-A02, este mês. Dois
rapazes foram mortos por suposta reação à abordagem no bairro do Barreirinha.
Na versão dos policiais da Companhia Independente de Policiamento Tático
(CIPT/Oeste) e da 84º Companhia Independente da PM/Pelotão de Emprego Tático
Operacional (Peto), armas e drogas foram encontradas com os jovens. Moradores
também negam que houve confronto.
Outra situação que chama a atenção na morte desses dois
jovens é que o condutor da viatura da Peto é apontado como sendo o quarto
policial que teria entrado junto com o tenente, o soldado e o cabo na casa
de Eduardo quando o rapaz foi morto.
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