Caso aconteceu no interior de SP; especialistas dão possível
explicação de como ela teria aguentado tanto tempo
Garota de 3 anos foi encontrada desnutrida após pai negligenciar alimentação
Nesta semana, o caso de um homem que deixou a filha, uma
criança de 3 anos, por mais de 40 dias sem comer, chocou o país. A menina, que
foi encontrada desnutrida e com os ossos à mostra, está com sequelas para sentar,
falar e andar, segundo boletim médico divulgado na última terça-feira (6) pela
Santa Casa de Rio Claro, no interior de São Paulo.
O acusado relatou aos policiais que também estava sem comer
durante esse período. A filha foi diagnosticada com desnutrição marasmática
aguda.
O Manual MSD de Diagnóstico e Tratamento explica que existem
três tipos de desnutrição proteico-energéticas: marasmo, Kwashiorkor e
inanição.
O marasmo ocorre quando há uma deficiência grave de calorias
e proteínas, que causa a perda de peso, massa muscular e de gordura, além da
desidratação. Esse tipo de desnutrição costuma afetar lactentes e crianças
pequenas.
A desnutrição Kwashiorkor causa uma deficiência maior de
proteínas do que de calorias, e é menos comum do que o marasmo. Apesar de ser
mais comum em algumas regiões do mundo após o desmame de bebês, esse tipo de
desnutrição pode afetar qualquer pessoa que tenha uma dieta pobre em proteínas,
mesmo que rica em calorias e carboidratos.
Quem desenvolve Kwashiorkor tende a reter líquidos, podendo
ter um aspecto inchado e, em casos graves, ter o abdome distendido.
Já a inanição é a manifestação mais extrema da
desnutrição proteico-energética, ocasionada pela falta parcial ou total de
nutrientes durante um longo período de tempo.
O Manual MSD destaca que esse tipo de desnutrição costuma ocorrer
devido à falta de alimentos disponíveis, mas pode ser decorrente, também, de
jejuns propositais ou de anorexia nervosa.
A endocrinologista Thais Mussi, da SBEM (Sociedade Brasileira
de Endocrinologia e Metabologia), afirma que uma pessoa saudável e bem
hidratada pode sobreviver até três semanas sem comer. No entanto, o período
pode variar conforme o organismo de cada pessoa.
"Crianças e lactentes têm necessidades nutricionais
específicas devido ao seu crescimento e desenvolvimento acelerados. Portanto,
períodos prolongados de jejum podem ter um impacto maior nessas faixas etárias.
Além disso, idosos podem apresentar maior vulnerabilidade e riscos relacionados
ao jejum prolongado", alega Tassiane Alvarenga, também endocrinologista da
SBEM.
Já adultos saudáveis, com reservas de gordura mais
substânciais e menor taxa metabólica, podem suportar o jejum por mais tempo.
Embora haja essa limitação de tempo, Thais explica que o
corpo humano é adaptável. O que poderia explicar a sobrevivência por tanto
tempo seria a manutenção de hidratação e o fato de a criança estar fisicamente
inativa.
Ainda que exista essa possibilidade, as consequências ao
organismo de uma criança são graves.
"Na maioria dos casos, ficar de 20 a 40 dias em jejum
pode ser fatal [de modo geral]. O consumo de água, por exemplo, pode
influenciar no tempo de sobrevivência de uma pessoa em privação de
comida", explica a nutricionista Vanessa Furstenberger.
Ela acrescenta que as moléculas que são fontes de energia
para o corpo são: carboidratos, lipídeos e proteínas, que também acabam sendo
consumidos nessa ordem quando o corpo precisa de energia.
"Quando o organismo começa a quebrar proteínas, ele
estará degradando os próprios tecidos e, nesse ponto, os efeitos colaterais
começam a ser significativos, trazendo riscos a saúde", conclui.
O pediatra Paulo Telles, da SBP (Sociedade Brasileira de
Pediatria), assegura que os efeitos e as consequências da desnutrição para o
futuro da criança podem incluir atraso no crescimento, atraso do neurodesenvolvimento,
baixa capacidade para resolução de problemas e alteração do sistema
imunológico, o que favorece o aparecimento de infecções.
Os especialistas lembram, ainda, que o jejum prolongado pode
levar à perda de peso, fraqueza e tontura, alterações de humor, irritabilidade,
halitose, dores de cabeça, desmaios, crises de hipoglicemia (níveis baixos de
glicose no sangue), redução do metabolismo, e até mesmo levar à falência de
órgãos e, consequentemente, à morte.
Reações fisiológicas
Thais explica que, a partir do jejum, o corpo entra em uma
espécie de "modo de sobrevivência". Entre as reações fisiológicas que
aconteccem na privação alimentar, ela cita:
• Glicogenólise (aproximadamente 24 a 48 horas): o corpo usa as reservas de glicogênio
no fígado e nos músculos. O glicogênio é quebrado para liberar glicose, que é
usada como fonte de energia.
• Cetose (de alguns dias a duas semanas aproximadamente): quando
as reservas de glicogênio se esgotam, o corpo começa a quebrar gorduras para
obter energia. Isso resulta na produção de corpos cetônicos, que podem ser
usados pelo cérebro e outros tecidos para ter energia.
• Fome proteica (após duas a três semanas): se a privação de comida
continuar, o corpo passa a quebrar proteínas nos músculos e em outros tecidos
para obter energia, o que pode levar à perda de massa muscular e eventual
falência de órgãos.
"Durante esse tempo, muitos processos metabólicos e
hormonais ocorrem para tentar manter o corpo funcionando. Por exemplo, a
secreção de insulina diminui para reduzir a utilização de glicose, e o glucagon
e o cortisol aumentam para promover a quebra de gordura e proteína",
esclarece.
Atualmente, a criança se encontra internada e está em
processo de reintrodução alimentar. As médicas Flávia Meneghetti e Samila
Batelochi Gallo, responsáveis pela recuperação dela, disseram ao R7 que,
a princípio, "a dieta é pastosa, com aumento gradual de proteínas e
calorias e com suplementação de vitaminas e minerais adequados para a situação
atual dela".
Tassiane afirma que, nos casos de jejum prolongado, como o
que houve, é necessário que a reintrodução alimentar seja feita com a
orientação médica, de modo a evitar que ocorra a síndrome de
realimentação.
A condição é potencialmente letal e causa
alterações neurológicas, sintomas respiratórios, arritmias e falência
cardíacas, poucos dias após a realimentação.
Sua causa é decorrente da sobrecarga na ingestão calórica e
da reduzida capacidade do sistema cardiovascular.
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