Vitória Damaceno Bittencourt começou a jogar por influência
de uma produtora de conteúdo. Não imaginou que, meses depois, perderia as
economias para comprar uma casa e teria empréstimos no banco para sustentar o
vício. Aqui explicamos como identificar o vício em jogos e o tratamento ideal
para a dependência
A comerciante Vitória Damaceno Bittencourt, de 23
anos, começou a jogar o Jogo do Tigrinho por influência de uma produtora de
conteúdo de sua cidade, Maringá (PR). Ela não imaginou que, em poucos meses,
queimaria nas apostas 160 mil reais, entre empréstimos e economias para comprar
uma casa.
Os lances começaram em maio de 2023. Na primeira tentativa,
100 reais viraram 800. Na época, Bittencourt trabalhava como Uber e ralava 12
horas para obter 150 reais de lucro. Se com poucos cliques ela conseguiu juntar
muito mais do que como motorista, continuar no joguinho parecia uma escolha
óbvia.
À noite, pegar o celular, deitar na cama, sintonizar a TV na
novela e jogar se tornou um hábito diário. Aos poucos, os aportes foram
subindo. De 100 para 500. De 500 para 800. De 800 para 1 mil, de 1 mil para 2
mil.
Começou a fazer pequenos empréstimos no banco. Três meses
depois, sem saldo para continuar jogando, Bittencourt retirou 11 mil reais de
uma conta conjunta com o marido para dar entrada em uma casa.
“Meu marido sabia que eu jogava, mas achava que eu tinha
total controle sobre as apostas. Ele não sabia que eu tinha pegado dinheiro da
nossa poupança para jogar”, admite. Para não ser desmascarada, entrou no
aplicativo do banco e, em poucos cliques, fez um empréstimo de 20 mil.
Com os últimos 700 reais, a comerciante ganhou 51 mil.
Marotamente, no entanto, a plataforma de jogos não permitia sacar todo o
dinheiro de uma vez, mas apenas lotes de 3 mil por dia. Ao cabo de uma semana,
Bittencourt encaminhou 20 mil reais para sua conta bancária. É claro que,
durante esse tempo, ela usou o saldo disponível para jogar… e perdeu tudo.
Bittencourt não parou. Apostou em plataformas diferentes 50
mil reais que eram dela e do marido, sem o cônjuge saber. “Das 5h da tarde à
meia-noite, eu perdi tudo. Entrei em desespero e decidi fazer mais empréstimos
no banco para cobrir o rombo”, relembra.
Desta vez, no entanto, não conseguiu crédito. Ela calcula
que, entre dinheiro do banco e economias, teve um prejuízo de 160 mil reais,
sendo 110 mil só em dívidas bancárias. Sem saída, decidiu contar a verdade ao
marido.
“Eu não consigo descrever a culpa que senti. A dor era tão
grande que eu tive vontade de tirar a minha vida”, desabafa. Embora o marido
tenha ficado nervoso, decidiu ajudá-la. “Ele disse que a gente ia trabalhar e
reconstruir a vida. Você só tem que querer”, conta.
Bittencourt contou a verdade ao marido quando se viu sem saída — Foto: Arquivo pessoal |
Quando Bittencourt assumiu o erro, lembrou-se de familiares
que a alertaram sobre o vício, que ela negava. A comerciante continuou jogando,
escondida do marido, e só parou quando fez uma promessa, há oito meses. “Eu vi
que estava destruindo a minha vida e arriscando o meu casamento”, diz ela, que
garante nunca ter tido nenhum vício.
Para evitar recaídas, ela parou de seguir influenciadores que
postavam sobre os jogos. Voltou a trabalhar como Uber, depois comprou uma loja
e hoje trabalha como comerciante. “As pessoas acham que param na hora que quer.
Não é assim. O jogo vicia”, diz.
O que é o Jogo do Tigrinho?
Jogo do Tigrinho é um nome genérico para uma espécie de
cassino online. Assim como uma máquina de caça níquel, o objetivo é que o
jogador, ao apertar um botão, combine três figuras iguais enfileiradas na tela.
Essa modalidade ficou famosa por causa de uma propaganda
extensiva feita por influenciadores digitais. Além disso, somos bombardeados
com convites no WhatsApp e nas redes sociais. Ninguém precisa ir até o jogo —
ele vem até nós.
Uma reportagem publicada por Marie Claire neste
ano revelou que, de acordo com dados da Pesquisa Game Brasil de 2021, mais da
metade (51,5%) dos jogadores online são mulheres.
Segundo uma pesquisa feita em 2022 pela plataforma Esportes
da Sorte, divulgada no jornal O Globo, as apostadoras representam
43,8% do seu público geral, com idades que variam de 18 a mais de 55 anos. A
maioria (45,4%) se concentra na faixa de 25 a 34 anos.
Por que o Jogo do Tigrinho vicia?
“O jogo de azar vicia porque aciona a área de recompensa do
cérebro e causa prazer imediato. É um sistema altamente vulnerável”, diz a
psicóloga clínica Carla Cavalheiro Moura, coordenadora do grupo de
dependências tecnológicas do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do
Impulso (Amiti), do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
De acordo com a psicóloga, existe hoje uma convergência das
mídias: “Elementos dos jogos eletrônicos estão indo para os de azar, e
elementos dos jogos de azar estão sendo inseridos nos eletrônicos”. O Tigrinho
é um exemplo disso.
Cérebros infantis são mais vulneráveis ainda a esse modelo,
porque não estão prontos para controlar impulsos e antecipar consequências.
Não são todas as pessoas que vão jogar e se viciar no jogo.
Todos nós, porém, corremos o risco de que isso aconteça. O mecanismo da
dependência reúne componentes biopsicossociais. São questões biológicas,
hereditárias e sociais, como a fase que a pessoa está vivendo e seu estágio do
desenvolvimento cerebral.
O jogo representa um escapismo fácil, prazeroso e perigoso,
sobretudo em fases de fragilidade e vulnerabilidade, que todos nós
experimentamos na vida. “Algumas pessoas são mais impulsivas e têm dificuldade
de pisar no freio. Vários vão perceber a hora de parar e conseguir fazer isso,
mas outros não, por diversos fatores”, aponta Moura.
Quando a pessoa está viciada e como tratar a dependência?
A qualidade de vida é um sinal robusto de que o vício está
instalado. Aquele indivíduo que joga tanto a ponto de impactar o relacionamento
familiar, causar prejuízo no trabalho e/ou negligenciar o autocuidado
provavelmente passou do ponto.
O vício em jogos de azar está na categoria comportamental, no
mesmo baú da dependência em pornografia, vídeogame, compras e redes socias. “A
circuitaria envolvida é a mesma de uma dependência química. A pessoa precisa de
doses cada vez maiores e tem abstinências sutis, não tanto como nas substâncias
ingeridas, mas tem”, afirma Moura.
O caminho para romper esse ciclo começa pela conscientização.
Muitas pessoas nem sequer sabem que esses comportamentos podem ser viciantes.
Se o problema estiver instalado, o tratamento envolve
acompanhamento com psicólogo e, eventualmente, psiquiatra, se houver
necessidade medicamentosa. É comum que a dependência seja acompanhada de
comorbidades como depressão e ansiedade. Além disso, recomenda-se que a pessoa
tenha uma alimentação saudável, pratique exercícios, durma bem, controle
fatores estressores e tenha acesso a lazer e cultura.